Osiris Lopes Filho*
No governo Lula há uma cegueira funcional. No objetivo de arrecadar mais e de agradar aos poderosos economicamente, nacionais e estrangeiros, não se dá bola para a sinalização estabelecida por nossa Constituição. E o governo vai rompendo os sinais vermelhos que interditam a passagem nas vias que escolhe transitar para alcançar seus objetivos.
A proposta de emenda constitucional (PEC) apresentada pelo ministro da Fazenda, Guido Mantega, aos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, a título de reforma tributária, é o exemplo, já repetitivo, dessa cegueira funcional – vê-se a realidade, mas age como se ela fosse inexistente e não contivesse obstáculos a impedir o caminho à ação escolhida.
A oportunidade para se começar a apreciar essa PEC é já. É que a matéria foi encaminhada à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Câmara. E está agendado o dia 25 para o relator, o jovem deputado Leonardo Picciani (PMDB-RJ), apresentar o relatório acerca da admissibilidade dessa PEC.
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A questão é relevante, pois a atual Constituição prevê, no seu art. 60, §4º, I, que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda, tendente a abolir a forma federativa de Estado”.
Note-se que a proibição é radical, pois alcança não apenas o ato, de abolição da Federação, mas a tentativa, vale dizer, a potencialidade de se abolir a Federação.
A nossa Federação surgiu junto com a República no final do século XIX. Tem mais de cem anos de existência.
Essa PEC debilita, no fundamental, a autonomia financeira dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, base de Federação, pois retira totalmente o poder dos Estados e do Distrito Federal sobre o principal tributo do país, o ICMS, que, no global, tem a maior arrecadação e incide sobre todas as operações com mercadorias e sobre os principais serviços, transporte e comunicações neste Brasil de dimensões continentais.
Toda a legislação desse imposto será produzida pela União, via lei complementar, e a reserva de competência que se faz ao Senado é ridícula. O Senado, cuja função é representar os Estados, poderá criar as alíquotas teóricas, mas a matéria a que ela se refere será definida por um órgão burocrático, composto por representantes dos Executivos dos Estados e do Distrito Federal, cabendo ao Senado aprovar ou rejeitar a decisão desse órgão, sem poder introduzir-lhe modificações.
Atribui-se competência à União para instituir imposto sobre “operações com bens e prestação de serviços”, e se dá às prestações de serviço amplíssima abrangência, pois dispõe a PEC que “considera-se prestação de serviço toda e qualquer operação que não constitua circulação ou transmissão de bens”, e se prevê a eficácia desse tributo para o 1º dia do 2º ano, subseqüente à promulgação dessa emenda.
Ter-se-á esse novo imposto convivendo com o ICMS, dos Estados, e o ISS, dos municípios, em prejuízo dos seus contribuintes, posto que esse novo tributo abrange a mesma matéria, e no caso do ISS, dos municípios, haverá também dupla incidência sobre os prestadores de serviço. Tanta cumulação tributária sobre a idêntica materialidade criará obviamente conflitos tributários e incentivará a evasão, pois carga tributária elevadíssima induz à fuga ao tributo.
O escárnio é que se atribui à nova versão do ICMS, que vigerá a partir do 1º de janeiro do oitavo ano subseqüente ao da promulgação da emenda, o título de imposto da competência conjunta dos Estados e do Distrito Federal. Até a apresentação dessa emenda, competência tributária tem sido definida como a atribuição, feita pela Constituição, a um determinado ente federado para instituir certo tributo.
Assim, tem-se competência privativa, comum, cumulativa, residual e concorrente. Essa nova versão do ICMS é de criação pela União. Aos Estados cabe apenas arrecadá-lo. Não dar-lhe instituição. É um tributo adotivo, gerado por terceiro. Não há criação conjunta.
O expansionismo da União é brutal. Restabelece-se a possibilidade de a União conceder isenção de tributos estaduais e municipais, prevista na Carta de 1969, no seu art. 19, §2º, instituída pela ditadura militar. Com efeito, cria-se previsão de a União, por meio do tratado internacional, conceder isenção de tributos estaduais e municipais.
É um retorno a algo deplorável, mas recente, aos anos de chumbo da ditadura militar. O pior é a retrogradação ao Estado unitário, que vigeu na fase monárquica e que a República e a Federação vieram substituir. É a marca indelével do retorno ao atraso.
Espero que o jovem deputado Picciani não esteja enredado na urdidura da destruição da Federação. E corte logo a trajetória dessa proposta camuflada de moderna, mas atrasada historicamente. O Estado Nacional exige descentralização e autonomia dos seus integrantes. A forma de fazê-lo é a Federação. Não se admita essa PEC.
*Osiris de Azevedo Lopes Filho, advogado e professor de Direito na Universidade de Brasília (UnB), foi secretário da Receita Federal. E-mail: osirisfilho@azevedolopes.adv.br.
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