Marcelo Mirisola*
“Em ‘A missão sagrada de Darwin’ (‘Darwin’s Secret Cause’), Adrian Desmond e James Moore argumentam que foi a repugnância moral de Darwin à escravidão que o motivou a levar adiante suas idéias”.
O parágrafo acima é de autoria de Marcelo Gleiser (Folha de S.Paulo, 8/2). Em seguida, o cientista-articulista dá a noticia consumada (nem se dá ao trabalho de tentar convencer o leitor) de que foi realmente isso o que aconteceu. Não li a obra, acompanhei apenas as resenhas nos jornais. Aliás, o livro foi fartamente resenhado por aqui nos últimos dias: em todos os jornalões e não somente na seção de livros de ficção. Vale dizer: não foram apenas os culturetes deslumbrados dos segundos cadernos que aceitaram a tese de Desmond e Moore, mas cientistas e gente da “área” igualmente corroboraram a tese de “A missão sagrada de Darwin”. Acho no mínimo curioso, porque nem a própria teoria da evolução das espécies – depois de 150 anos – é uma unanimidade.
Antes de prosseguir, quero dizer que continuo acreditando em… Charles Darwin. Uma vez que continuo desacreditando em boas intenções e no politicamente correto. Creio que, em pouquíssimo tempo, se a teoria da evolução das espécies realmente prevalecer, o livro de Desmond e Moore vai fazer companhia aos livros de Gilberto Dimenstein. Isto é, vai mofar nas prateleiras dos sebos esquecido sobre suas boas intenções.
Marcelo Gleiser caiu feito um pato na arapuca armada por Desmond e Moore. Fico sinceramente preocupado quando um cientista da respeitabilidade de um Marcelo Gleiser confunde ficção e especulação politicamente correta com ciência. Eu não devia me espantar, mas é incrível: ainda hoje tem gente que acredita que a psicanálise é uma ciência e que Freud é um cientista. O homem do charuto não passava de um escritor genial, só isso. E vampirizou muita coisa de Dostoievski, diga-se de passagem.
Palavras de Gleiser: “E foi quando Darwin visitou o Brasil durante a famosa viagem em torno do mundo com o navio HMS Beagle que ele travou contato direto com os horrores da escravidão. Certo dia, quando passava de canoa por um mangue, Darwin ouviu um grito terrível. O doloroso episódio ficou gravado na sua memória. ‘Até hoje’, escreveu o naturalista em seu jornal mais tarde, ‘quando ouço um grito à distância, revivo com enorme intensidade o que senti quando, ao passar perto de uma casa em Pernambuco, ouvi gemidos terríveis, certamente vindos de um escravo sendo torturado e, tal qual uma criança, não pude fazer nada.’ Em seus livros A Origem das Espécies e A Origem do Homem e a Seleção Natural, Darwin argumenta por uma origem comum da vida. Sendo assim, existe uma irmandade entre todos os homens, o que torna a escravidão um crime absurdo. O interessante do argumento é que, segundo os autores, foram as idéias abolicionistas de Darwin que o levaram à teoria da evolução e não o contrário”.
Será? Eu penso que essa qualidade de raciocínio é de uma covardia intelectual ou de uma infantilidade intelectual gritante. Explico. Quando Marcelo Gleiser diz: “Sendo assim, existe uma irmandade entre todos os homens, o que torna a escravidão um crime absurdo”, ele – que comprou a tese furada de Desmond e Moore – nada mais faz do que desqualificar de antemão qualquer argumento contrário e encerrar a discussão antes do enunciado porque, ora… porque é óbvio e ululante que o racismo é um crime absurdo. Se Gleiser dissesse que a pedofilia seguida de latrocínio é um crime absurdo, ué, quem é que diria o contrário? Todavia não é essa a questão.
PublicidadePretendo ir além da cortina de fumaça. Digamos que sim, e digamos que além das “idéias abolicionistas” (que supostamente teriam levado o cientista inglês à teoria da evolução das espécies), Darwin também tivesse algumas “idéias fetichistas”. Por que não?
Sim, imaginemos um Darwin especialista em calcanhares femininos, um Darwin podólatra. Gostaria que Marcelo Gleiser me respondesse: o fetichismo de Darwin o teria levado à teoria da evolução das espécies?
Caso embarcássemos na ingenuidade de Marcelo Gleiser (vou ser bonzinho e atribuir à ingenuidade e não à má-fé as considerações do cientista brasileiro), pois bem, caso aceitássemos a tese de Desmond e Moore, a resposta seria positiva. Se o abolicionismo o levou à teoria da evolução das espécies, por que não o fetichismo?
Darwin poderia ter começado a matutar a teoria da evolução das espécies chupando o tornozelo de sua esposa (de baixo para cima), provavelmente contrariado com a lembrança dos gritos de horror que ouviu de um escravo sendo torturado
Quem leva a sério esse tipo de argumento deve acreditar que Santos Dumont inventou o avião porque era um homossexual reprimido que queria ter liberdade para voar feito uma borboleta. Alguém aqui é louco de ser contra a liberdade?
Se eu dissesse que Santos Dumont desdobrou-se em estudos e pesquisas ao longo da vida e chegou à conclusão de que o ar em cima e embaixo das asas é que dá sustentação ao avião, e que, por conseguinte, o que faz um avião voar é a impulsão, eu estaria sendo homofóbico?
Não sei, mas provavelmente por contrariar uma tese tão fofa como a de Desmond e Moore vou ser acusado de racista. Dane-se.
Continua Gleiser: “Seu avô, o famoso médico e poeta Erasmus Darwin, era um notório abolicionista, muito amigo do industrial Josiah Wedgwood, cujas porcelanas são conhecidas até hoje. Wedgwood usou seus fornos para criar um medalhão com a imagem de um escravo acorrentado e a legenda: ‘Não sou também um Homem e seu Irmão?’ O medalhão era um objeto cobiçado por todos que eram da mesma opinião.
As famílias Darwin e Wedgwood foram unidas por uma série de matrimônios. O próprio Charles casou-se com Emma Wedgwood, sua prima de primeiro grau. (Interessante que o pai da evolução tivesse feito isso. Tiveram dez filhos e dois morreram na infância. A cada vez que um dos filhos ficava doente, Darwin se preocupava com os laços excessivamente estreitos de sua família. Nesse caso, ter dez filhos deve ter sido provavelmente uma espécie de experimento.)”.
Aqui Gleiser se entrega e – despercebidamente – comprova que o seu raciocínio é fraudulento: ora, se Darwin era darwinista da mesma forma que o abolicionismo foi quem o levou à teoria da evolução das espécies, como é que ele poderia ter se casado com a prima de primeiro grau? Nesse caso, Gleiser pode fazer piadinha e dizer que os dois filhos mortos de Darwin não passaram de “um experimento”? Pelo raciocínio que Gleiser comprou dos autores dessa bobagem chamada “A missão sagrada”, Menguele seria um Darwinista fundamental e justificável, é isso?
Mas é bonito dizer, em tempos politicamente corretos, que as idéias abolicionistas de Darwin o levaram à teoria da evolução das espécies. Para mim, isso não passa de ficção da pior qualidade, papel aceita tudo. E eu até compreendo que as culturetes deslumbradas dos nossos segundos cadernos, que acham o Caetano um gênio, comprassem essa versão. A minha versão é que não comprariam… Mas, enfim, Marcelo Gleiser não é aquele “cientista” que vende milhares de livros? Não foi ele que teve um programa no Fantástico, é articulista da Folha de S. Paulo e ensina física no Dartmouth College, em Hanover?
Prefiro o Mister M dublado pelo Cid Moreira.
Gleiser continua: “A abolição era certamente tema constante nas conversas da família, um trato quase hereditário”.
A abolição e a choradeira das crianças, Dr.Gleiser. Duvido que a primeira ocupava mais o tempo e a atenção dos Darwin que a segunda.
“Foi nesse ambiente ideológico que Darwin cresceu e criou os filhos. Certamente, Darwin viu escravos ainda na Inglaterra”.
Deve ter visto escravos e decerto viu reis e rainhas, e tomou licor de gengibre no Clube dos Cientistas (imagino que devesse ter um clube desses à época, o gengibre fica por conta da minha imaginação) junto com “fulano de tal” que era um notório filho da puta e um gênio da biologia. Ou o senhor, Dr. Gleiser, vai excluir a hipótese de que um filho da puta – que não fosse um anjo bem-intencionado dos círculos angelicais que Darwin frequentava – jamais poderia ter se aproximado de Charles Darwin e o influenciado?
“Ao estudar (teologia) em Cambridge, aprendeu que certos membros da igreja anglicana eram radicalmente contra a escravidão. Sabia que não estava sozinho e que o movimento abolicionista apenas cresceria com o tempo. Mas queria mais do que argumentos apenas morais. Queria argumentos científicos” – escreve Gleiser.
Não sou cientista, doutor Gleiser, mas acredito que não é só pra atravessar a rua que precisamos de argumentos morais, mas para fazer ciência também. Evidentemente que não é o bastante. Se a finalidade desse seu “raciocínio” era surpreender o leitor, quero lhe informar, doutor, que o nome disso é pleonasmo. Ora, se Darwin não fizesse ciência com argumentos científicos, doutor Gleiser, iria fazer ciência com o quê? Com a teologia que aprendeu em Cambridge?
E o doutor Gleiser insiste que descobriu a pólvora do politicamente correto: “Ao propor a evolução das espécies, Darwin não nos excluiu. Esse foi o maior motivo para a recepção nem sempre positiva de suas idéias. ‘O quê? Nós, descendentes de orangotangos? Primos dos negros da África, dos chineses e dos aborígenes da Austrália? Ridículo!’”.
Bem, finalmente tenho que concordar com uma parte do “pensamento” do professor Gleiser; da mesma forma que concordaria com os argumentos dos anãos evangélicos da Ilha de Sumatra (espero que haja esse tipo de anão por lá): somos mesmo ridículos, e, além de ridículos, canibais. Sim, eu assumo meu canibalismo e adoro jantar anão – não me importa se são neo-pentecostais ou se têm 1m90 e ensinam física no Dartmouth College. Ah, doutor Gleiser, o senhor devia saber que existem canibais menos tolos, primitivos e ridículos que vossa ilustríssima senhoria, poderia ter evitado de ter sido jantado
Coitadinho do dr.Gleiser, ele termina o texto enviando uma mensagem de esperança, fé e união ao seu público politicamente correto, e diz o seguinte: “Se a ciência de Darwin não foi criada para justificar a unidade da vida, ela certamente o fez”.
Se Marcelo Gleiser concluísse dizendo algo do tipo “e depois todos viveram felizes para sempre”, daria no mesmo. Lamento dizer, doutor – o senhor como cientista deveria saber –: mas infelizmente esse não seria um final imaginado por Charles Darwin, mesmo porque Darwin era darwinista.
PS. Dia 11 de fevereiro, quarta-feira passada, aconteceu a estreia do meu "Monólogo da Velha Apresentadora" no teatro dos Satyros. Foi uma grande noite, e eu gostaria de dizer que estou muito feliz de ter escolhido Alberto Guzik para interpretar "A Velha". Às vezes eu acerto, como é o caso dessa Velha. Às vezes cometo erros grosseiros, admito. Indepentemente dos erros e dos acertos, faço questão de assinar embaixo dos meus trabalhos, e não me furto de encarar de frente os eventuais elogios e as inevitáveis esculhambações. Coisa do ofício. Sou um autor. E é nessa condição que gostaria de avisar os leitores de Mônica Bérgamo que o "Monólogo da Velha Apresentadora" não é uma peça espírita. Alô, dona Mônica. A velha é fruto do meu sangue, do meu suor e das minhas lágrimas. Será que não passou por sua cabeça de jornalista (sic) que autores escrevem peças de teatro? Já ouviu falar em Ionesco, Nelson Rodrigues, Ibsen? Não, imagino que não. Mas da Preta Gil a senhora é íntima, confere? Imagino que ela jamais passaria despercebida em sua coluna. Não sei se foi incompetência ou pura indelicadeza de sua parte. De qualquer forma, deixo aqui registrado o meu espanto: espanto, dona Mônica, de Autor. Esse chato que escreve peças para falar de gente como a senhora e dona Hebe Camargo. Da próxima vez dê o devido crédito – custa menos que uma retratação e não machuca nada.
*Marcelo Mirisola, 42, é paulistano, autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô, O azul do filho morto (os três pela Editora 34), Joana a contragosto (Record), entre outros.