Bajonas Teixeira de Brito Junior*
O senador Eduardo Azeredo volta à baila com seu projeto de arcaísmo digital. Havíamos já mostrado, em artigo publicado no Congresso em Foco, como a formulação anterior de seu projeto de lei de crimes digitais não servia aos usuários e, tampouco, insinuava alguma intimidade com o sentido moderno do universo virtual. Muito ao contrário, buscando servir aos bancos, terminava por reduzir as redes digitais, por onde hoje circulam boas partes das nossas energias criativas e democráticas, a meros currais cibernéticos. Agora, quando se aproxima de novo a votação do projeto na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, ressaltam mais nítidos os traços regressivos do projeto, tão grotesco a ponto de abrir caminho para a figura do “justiceiro virtual”.
Parodiando Dostoiévski, e recordando o jovem perturbado de Crime e castigo, pode-se dizer que o senador Eduardo Azeredo foi tomado por um espírito surdo, cego e mudo. Surdo, diante das inúmeras manifestações de repulsa ao seu projeto, de vários modos prejudicial e regressivo. Cego, em relação aos diversos sentidos em que a internet inova e expande a liberdade moderna. Mudo, uma vez que se recusa a expor amplamente o seu projeto e enfrentar, cara a cara, as enormes divergências que suscita.
No fundo, o que está acontecendo é que o novo projeto, que dispensa o cadastramento que era exigido pelo anterior, faz voltar pela porta dos fundos, quando exige dos provedores que assumam a função de “dedos-duros”, o mesmo desejo intenso de servir aos bancos. Basta considerar o exemplo que o senador aduz para defender seu projeto:
"O envio de e-mails para captura de dados de usuários da internet é crime, tipificado como difusão de código malicioso. O profissional de informática habilitado poderá usar a mesma técnica usada pelo hacker em legítima defesa do sistema para o qual ele trabalha".
Trocando em miúdos: os profissionais e empresas de segurança que trabalham para os bancos, tornam-se policiais e juízes, e podem invadir computadores e violar a privacidade para atender aos seus clientes, isto é, os bancos, que hoje são os responsáveis pelas falhas de segurança nas transações via internet. Claro que isso é inconstitucional, que fere o inciso 12 do artigo 5º da Constituição Federal, que diz:
“XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;”
A violência desse projeto, visível já no modo como golpeia rudemente o direito à privacidade garantido na Constituição, deve ser entendida como conseqüência natural de seu fim exclusivista — com o pretexto de servir à sociedade, na verdade, ele legisla para um grupo muito restrito, e coincidentemente muito endinheirado e poderoso no Brasil: os bancos. É por essa porta dos fundos automática que o referido espírito surdo, cego e mudo entra no corpo político do senador Azeredo. Visto isso, podem agora aquilatar das diversas tropelias retrôs que o projeto esposa.
Como grupos paramilitares que seqüestram e matam à revelia da Justiça, do mesmo modo a lei proposta pelo senador permite às empresas de segurança caçarem suspeitos na web, unicamente pela encomenda de seus clientes. O “phishing”, que é o roubo de senhas, é considerado crime, mas (e notem, esse “mas” é tudo) não para os profissionais de segurança, que o façam em caso de defesa digital ou contra-ataques. Será que o senador não pensou que o limite entre a defesa e a violação, num país como o Brasil, seria sempre dificílimo de determinar e manter?
Parece que, lembrando o caso da Colômbia que hoje está às voltas com a parapolítica, isto é, a associação de políticos e paramilitares, nós também nos vemos confrontados com uma espécie de intimidação ameaçadora que bem se pode chamar de “paravirtualidade”. E de fato, as informações que nos chegam do projeto, deixam muito claro que, considerado o sentido plural e inclusivo da virtualidade, o projeto do senador Azeredo mostra-se decisivamente paranormal. Senão, brutalmente anormal.
Bem considerado, o projeto pode ser aquilatado ainda pelo sistema de regressões que propõe (e cada regressão configura, sem dúvida, uma modalidade de agressão aos usuários). Podemos dizer que ele, reagindo instintivamente contra os riscos de um fluxo de informações e possibilidades que assusta as classes dominantes brasileiras, que sempre tiveram seus jagunços e capangas para manter a ordem, insistentemente teima em regredir. E isso em todas as frentes que dizem respeito à liberdade digital. Assim, vê-se de modo nítido, que recua da imaterialidade à materialidade, porque bits e bytes passam a ser equiparados a coisa e, com isso, reavivam-se as bases do direito romano, ultra-retrógrado, para tentar pôr a ferros um fenômeno típico da pós-modernidade.
O senador não compreende que o princípio da materialidade da coisa está em que, se a retiramos de alguém, esse sujeito a perde e, portanto, deixa de possuir algo, enquanto, contrariamente, o universo de dados tem sua imaterialidade justamente no fato de que se pode transferi-lo infinitamente sem que alguma privação se verifique. Ao transferir um arquivo pela internet para outra pessoa, eu não saio perdendo. Ao contrário, verifica-se um ganho coletivo pela multiplicação de informações e de cultura. Mas, atento à proteção dos bancos, o senador entende que bits e bytes são coisas e, portanto, devem estar sujeitas ao princípio da raridade, o que é estapafúrdio. Se eu divido uma coisa, algo é subtraído de alguém, se eu divido um dado virtual, sua realidade se multiplica. A violência sobre esse princípio, caracteriza o projeto de Azeredo.
Do mesmo modo que coisifica o que não é coisa, o projeto recusa a autonomia e a responsabilidade dos sujeitos, características de qualquer sociedade democrática, fazendo-os recuar a condição de tutelados, uma vez que sua navegação passa a estar sujeita ao acompanhamento constante pelos provedores.
Os provedores, por sua vez, deixam de ser prestadores de serviço para se habilitarem como patriarcas e agentes de polícia, como autoridades disciplinares em uma escola para jovens infratores (que são, no Brasil, miniaturas perfeitas do Inferno). Todos, de fato, são equiparados a delinqüentes potenciais e, portanto, sujeitos a permanente acompanhamento visando a eventual punição.
Com isso, do sistema de proliferação característico da era virtual, rumamos de volta para a centralização monárquica, com o acréscimo de que a justiça — que passa também a ser cooperada pelas mãos particulares dos “profissionais de segurança” — se apresenta agora em parte como delação e, em parte, como justiça com as próprias mãos (já que os agentes de segurança privados podem perseguir e punir).
Por fim, a liberdade irrestrita de troca e circulação da cultura e das informações, que é oferecida pelo sistema P2P de troca de arquivos (como é o caso do e-Mule), é também rejeitada. Isso quando as gravadoras e produtoras já concluíram que se aproxima o fim do DRM, a tecnologia que impede a cópia.
Portanto, em resumo, parece que o projeto do senador Eduardo Azeredo, que já era ruim na primeira versão, piorou em muito. Mas há tempo ainda para que, tentando enfurnar milhões de usuários já aclimatados à liberdade de movimentos em um curral de antanho, projetado ao estilo neo-colonial, o senador se veja de repente em meio ao estouro da boiada. Assim esperamos.
*Bajonas Teixeira de Brito Júnior é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).