Antônio Carlos de Almeida Castro, Marcelo Turbay Freiria e Liliane de Carvalho Gabriel *
Paulo Salim Maluf conseguiu encarnar ao longo de uma vida um paradoxo da História: o combate a ele, na eleição do colégio eleitoral, representou para muitos a vitória dos ideais da democracia e a derrota do arbítrio, da supressão de liberdades individuais. Enfim, o triunfo do estado de direito e da cidadania. Ele era o candidato apoiado pelas forças políticas que davam sustentação ao moribundo regime dos generais. Quis o destino que, em sua idade crepuscular, o combate a Paulo Salim Maluf passasse a representar justamente o oposto: a vitória do arbítrio e a derrota da cidadania, dos direitos individuais e da democracia tão arduamente conquistada, inclusive através da não eleição de Maluf no colégio eleitoral. Isso nos coloca uma questão: Maluf continua o mesmo, mas será que nosso ordenamento democrático está perdendo o rumo?
Feitas essas indagações, ao avaliar o caso concreto da prisão do Dr. Paulo Maluf, aos 86 anos, comprovadamente portador de doenças graves e atestadas até mesmo pelas autoridades estatais que sentenciaram o seu desnecessário martírio, passamos a expor fatos.
Quando assumimos a defesa do Dr. Paulo Maluf, em maio deste ano, a ação penal nº 863 já estava tramitando no Supremo Tribunal Federal há 10 anos. Naquele momento, o Dr. Paulo respondia a 5 acusações. Fizemos a defesa técnica em memoriais para que pudéssemos realizar a sustentação oral no julgamento, que já estava designado para maio de 2017.
Após a apresentação dos memoriais e sustentação oral, deu-se o julgamento sendo que o Dr. Paulo foi absolvido, ou melhor, teve extinta a punibilidade em 4 das acusações, mas foi condenado em uma acusação de lavagem de dinheiro, correspondente ao período de 1997 a 2006. O escritório não havia trabalhado, e não trabalhou, na instrução desse processo em momento algum. A nossa defesa técnica foi feita toda com base em uma discussão de direito.
Com o final do julgamento, conversando com o escritório de advocacia que atende o Dr. Paulo Maluf há muitos anos, ficamos sabendo que, naquele período em que a acusação se dava e onde houve a condenação, as contas do Dr. Paulo Maluf em Jersey já estavam congeladas administrativamente pela própria instituição bancária, o que tornava impossível ser ele o responsável pela movimentação da conta. Frise-se que neste processo não havia uma acusação de corrupção, apenas, embora muito grave, a acusação de lavagem de dinheiro no período compreendido entre 1997 a 2006.
Diligentemente, o escritório que trabalhava com Dr. Paulo Maluf esteve em Jersey/UK e, diante da recusa do banco em fornecer a documentação que excluía qualquer responsabilidade de Maluf, conseguiu que o Tribunal Constitucional de Jersey determinasse judicialmente que o Deutsche Bank International Limited, onde as contas estavam abrigadas, respondesse quem era o responsável por aquelas contas e se era verdade que, naquele momento, as contas estavam bloqueadas e que o Dr. Paulo não poderia sequer, nem se quisesse, movimentar valores a partir delas.
Por determinação do Tribunal Constitucional, o banco foi obrigado a se manifestar e assumiu que a responsabilidade por tais movimentações era única e exclusivamente do próprio banco e que o Dr. Paulo, nem se quisesse, poderia movimenta-las, pois, o bloqueio havia sido implementado desde 1999.
Ou seja, a defesa, que não havia participado da instrução, viu-se diante de uma surpreendente verdade: a condenação do Dr. Paulo Maluf por lavagem de dinheiro nas tais contas, no período compreendido entre 1997 e 2006, estava sendo claramente destruída pela prova então apresentada pelo Banco Deutsche Bank International Limited, que foi obrigado a revelar tais dados por ordem do Tribunal de Jersey/UK.
A conclusão era, portanto, inevitável e transparente: a 1ª Turma do STF estava, por maioria, mudando o entendimento histórico sobre a natureza jurídica da lavagem de dinheiro, chamando-a de delito permanente, de modo a fazer não prescrever a referida acusação. Ainda assim, a defesa agora tinha condições de demonstrar que, muito mais que prescrito, o alegado crime de lavagem não havia sido praticado por Paulo Maluf.
Curiosamente, em tempos em que algumas vozes vêm acusar decisões em favor das liberdades de casuísticas, o caso Maluf vem mostrar a todo o país uma condenação indevida, seguida de uma prisão absurda, ambas embaladas, essas sim, outras vozes poderão alertar, de teor voluntarista e casuístico.
E apresentamos, então, embargos de declaração com base nesses documentos novos e pedimos a manifestação da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal a respeito dessa nova prova exculpatória, pois já havia uma discussão anterior levada ao conhecimento dos Ministros em memoriais e em sustentação oral da tribuna, quando do julgamento: a necessidade de realização de perícia técnica oficial justamente para apurar, não a existência de movimentações, mas a natureza e a titularidade destas, sob pena de se enveredar para a responsabilização objetiva.
Infelizmente, o crime de lavagem de dinheiro, naturalmente vestigial, que exige o exame de corpo de delito, sobretudo quando envolve multiplicidade de valores e contas, acabou sendo tratado de forma simplista e a maioria da Turma entendeu que bastaria verificar extratos bancários para enveredar pela condenação, sem buscar compreender cada uma das operações supostamente ilícitas. Com a devida vênia, um triste equívoco, esclarecido pela confissão do banco.
No entendimento da defesa, agora mais do que nunca amparado pelos documentos obtidos judicialmente em Jersey/UK, caso tivesse sido realizada a perícia técnica, como determina a lei e conforme entendeu o Ministro Marco Aurélio em voto vencido, poder-se-ia comprovar que não foi Dr. Paulo Maluf o responsável pelas movimentações.
No julgamento dos embargos de declaração, o Supremo Tribunal Federal entendeu que se aqueles documentos tivessem sido apresentados antes, talvez poderia ter sido outro o resultado do julgamento, mesmo se tratando de matéria de ordem pública, invocável a qualquer tempo. Pelo menos dois ou três ministros do Supremo assim se manifestaram. Mas conheceram dos embargos e os rejeitaram, mais uma vez, de forma NÃO unânime. Tivemos o voto do Ministro Marco Aurélio, tanto na preliminar, quanto na questão da prescrição.
É importante ressaltar que a discussão jurídica que se desenvolve neste processo é de altíssima importância: se o crime de lavagem de dinheiro é um crime permanente ou se é um crime instantâneo, ou ainda instantâneo de efeitos permanentes. Este julgamento, essa definição do Supremo Tribunal Federal, poderá ter efeito em todos os julgamentos que se derem a respeito do crime de lavagem de dinheiro no país, daí a importância enorme do caso, que merece sim ser levado ao Plenário para discussão sobre esse ponto fulcral, não só para o Dr. Paulo Maluf, que se vê indevidamente encarcerado e cuja vida está sendo julgada, mas, principalmente, para todas as pessoas processadas por lavagem de dinheiro no Brasil.
No julgamento de mérito a defesa teve um voto favorável e também obteve outro voto de concordância quando do julgamento dos embargos de declaração, o que demonstra a relevância da matéria e a não conformação da integralidade da Corte com a inovação de entendimento proposta pelo Ministro Fachin.
Por óbvio, atendendo à pacífica jurisprudência do Supremo, inclusive quando do julgamento dos embargos infringentes no conhecido caso do Mensalão, a defesa, diligentemente e há tempo, apresentou embargos infringentes baseados naquele voto que nos era favorável, o do Ministro Marco Aurélio, para poder fazer com que o Supremo Tribunal Federal, em seu Plenário, enfrentasse a questão de fundo.
Vale dizer que, em todos os países civilizados do mundo, nas cortes internacionais européias, especialmente, é admitido que o cidadão, qualquer que seja, tem o direto ao duplo grau de jurisdição. O Dr. Paulo Maluf foi julgado pela 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal e, infelizmente, o Ministro Relator Edson Fachin não permitiu que os embargos infringentes fossem analisados pelo Plenário do Supremo, monocraticamente julgando-os protelatórios e sem mesmo ouvir a PGR a respeito, em claro atropelo do regimento interno do STF.
No caso concreto, em que os infringentes são cabíveis e a discussão traz matéria de ordem pública afeta à liberdade, o julgamento pelo Plenário do Supremo seria o segundo grau de jurisdição do Deputado Paulo Maluf que, infelizmente, ao ter a sua pretensão negada, foi indevidamente encarcerado às vésperas do Natal, de maneira indevida, cruel e desproporcional. Talvez seja o único dos mais de setecentos e sessenta mil presos do Brasil que esteja inconformadamente cumprindo pena definitiva tendo sido julgado somente em um grau de jurisdição, mesmo com um recurso cabível e relevante corretamente interposto. Este, certamente, é um reclamo que teria aceitação em todas as cortes constitucionais do mundo.
Ao negar a apresentação desses embargos infringentes ao Plenário, expressamente se afirmou que seriam embargos protelatórios. Ora, a defesa, que na pessoa do primeiro signatário, atua no Supremo há 35 anos, prima pelo absoluto respeito e lealdade ao Poder Judiciário, quer ressaltar que apresentou apenas um único recurso de embargos de declaração, que teve um voto de concordância e, em razão disso, apresentou na sequência um único recurso de embargos infringentes, em que demonstrou documentalmente que o voto vencido deveria prevalecer. Evidentemente que não se pode acusar de protelatória a apresentação de embargos previstos na legislação processual e aceitos pela maciça jurisprudência, sobretudo quando também invocam matéria de ordem pública e a concessão de HC de ofício na parte da dosimetria da pena, que repercute diretamente na liberdade do cidadão.
Sob esse aspecto é importante ressaltar que vários órgãos de advogados dos mais diversos saíram para ressaltar a importância da apresentação dos embargos infringentes, o cabimento dos embargos infringentes e uma crítica clara ao ataque que se faz à defesa quando se diz que ela agiu de forma protelatória.
No caso do Dr. Paulo Maluf, especificamente, a discussão ganha ainda um outro viés. O Dr. Paulo Maluf faz parte do imaginário popular brasileiro, naturalmente pela sua trajetória política e por ser uma figura histórica e polêmica, que desperta paixões, mas também reações, por isso provoca uma certa rejeição de parte da população brasileira, embora tenha, evidentemente, seu eleitorado cativo, tanto é que foi eleito repetidas vezes.
Logo após o despacho do ministro Fachin, que negou o direito de análise dos embargos infringentes e, no final, no apagar das luzes do ano judiciário, determinou o pronto recolhimento à prisão do Dr. Paulo, começaram a surgir, de lugares insuspeitos, as mais veementes críticas a este recolhimento prisional. Não só associações de advogados, mas mesmos os articulistas dos vários jornais indagam da necessidade de mandar e manter na prisão um homem de 86 anos de idade, acometido de uma série de doenças, um cidadão que está condenado por um crime que teria sido supostamente praticado há 18 anos.
E tal situação ganha ainda maior dramaticidade nesse momento, em que a defesa processou judicialmente um banco no Reino Unido para obter a mais importante prova absolutória em benefício do Dr. Paulo Maluf. E quando tais documentos seriam, enfim, levados ao conhecimento de todos os Ministros do STF, com a remessa dos embargos infringentes ao Plenário da Corte, surpreendentemente o relator julga-os protelatórios e determina a prisão, no último dia e na última hora do semestre forense.
Enfim, os fatos são de quase duas décadas atrás. Além disso, após essa data não há nenhuma acusação ao Dr. Paulo. É um crime que, embora grave, foi praticado sem violência. Há uma justificativa de manter na prisão um cidadão com 86 anos de idade acometido de doenças e que, segundo a acusação, teria praticado um crime há 18 anos e, após isso, não respondeu a nenhum tipo de processo? Ora, se a razão de ser e o ideal da pena é ressocializar e reinserir o cidadão na sociedade de modo que ele não mais pratique crimes, o objetivo estava plenamente alcançado e satisfeito. Então por que prender agora e, sobretudo, dessa maneira cruel, que mais lembra o obscurantismo dos antigos ordálios?
É interessante notar que este caso joga luz sobre uma discussão que a sociedade merece fazer. Como o Dr. Paulo tem essa visibilidade, desde o dia da decretação da sua prisão ele tem ocupado os principais jornais do país, escritos e televisivos, e a defesa tem feito o seu papel ao requerer uma prisão domiciliar, prevista na lei. O artigo 318, I, do Código de Processo Penal, traz um critério objetivo, que é o fato da pessoa ter 80 anos. É certo que aponta a jurisprudência que neste caso seria apenas para aquele que não tem o trânsito em julgado. Mas já há decisões que alargam esse entendimento também para pessoas com trânsito em julgado e em regime fechado, afinal, o requisito é objetivo: 80 anos de idade e são pouquíssimos aqueles que alcançam tal idade no sistema carcerário.
Outro requisito, que seria a condição de saúde, esse sim teria que ser analisado caso a caso. Mas, evidentemente, no caso do Dr. Paulo, parece-nos estar bastante caracterizados os dois requisitos, pelo fato de contar já com 86 anos de idade e ter problemas graves e reconhecidos hoje, inclusive, pelos médicos peritos do IML. Além da cardiopatia, também um câncer de próstata e uma hérnia de disco em estágio grave, com limitação severa de mobilidade.
E mesmo no julgamento dos embargos de declaração, a defesa cuidou de formular pedido subsidiário de prisão domiciliar, caso se mantivesse a violência da condenação. Mas o ministro relator lavou as mãos, relegou futuramente ao juiz de execução essa análise e, poucos meses depois, lançou o Dr. Paulo Maluf ao cárcere às vésperas do Natal. O juiz agora competente para tratar da domiciliar talvez não se sinta encorajado a conceder o que um ministro do STF não concedeu e Maluf continua encarcerado, para fazer piorar seu estado de saúde mais rapidamente, para se degradar fisicamente e emocionalmente, que é o que aponta o IML ao falar em diagnóstico de degeneração progressiva.
Talvez só assim, quando tiver sobrado pouco do ser humano lançado às chamas em praça pública, como exemplo, Suas Excelências quem sabe poderão sofrer um lampejo de humanidade e permitir que um cidadão de 86 anos possa cumprir sua pena de prisão trancafiado em casa. Enquanto isso, alguns continuam a aplaudir o espetáculo cruel da insensibilidade e da injustiça.
O que chama atenção neste momento é que muitas vezes se diz que essa discussão, que tamanha indignação só está se dando por ser o Dr. Paulo Maluf uma pessoa pública e muito conhecida. Ora, se isso é verdade, é importante então que esse debate se dê de forma absolutamente ampla, para que o caso se transforme em um norte, para que possa beneficiar e abrigar aquelas dezenas de pessoas que, com mais de 80 anos, estão jogadas no sistema carcerário brasileiro, reconhecidamente um sistema falido, um sistema perverso, um sistema que fez com que o Supremo Tribunal Federal condenasse, no julgamento de Medida Cautelar na ADPF 347, o Estado brasileiro pelo estado de coisa inconstitucional dada a miserabilidade do sistema prisional brasileiro.
Ora, que se aproveite então a oportunidade, que se faça um debate sério e comprometido para se propor a humanização do sistema carcerário, transformando a utopia da ressocialização em um horizonte possível. Qual o risco que um cidadão de mais de 80 anos, acometido de graves problemas de saúde, com uma condenação apenas na vida, por delito sem violência, de fato ocorrido há quase 20 anos atrás, pode representar à sociedade?
A pena não é e não deve ser a imposição desnecessária do sofrimento, sob pena de enveredar para a vingança privada, abolida há séculos do sistema penal brasileiro. Mas a prisão de Paulo Maluf, nas circunstâncias que se deu, foi sim um odioso justiçamento, alimentado por essa vingança penal que se acreditava não mais existir.
É tempo de refletir, de fazer cessar esse sofrimento a todos aqueles que se encontram, da mesma forma, lançados ao cárcere de forma não razoável, injusta, desproporcional. Que esse triste exemplo de injustiça ecoe por todo o país e que venha reverberar em cada canto, em cada penitenciária ou em cadeia imunda e desumana por esse Brasil afora.
Vale recordar, por oportuno, o caso Adriana Ancelmo, que teve a domiciliar concedida com fundamento no art 318, V, do CPP, um dispositivo de certa forma relegado ao esquecimento no Brasil. Os moralistas punitivistas de plantão bradaram sua ira, acusando a decisão de casuística e afirmando que só teria se dado para beneficiar uma pessoa conhecida, esposa de fulano ou ciclano. Pois bem, poucos dias depois todo o país começou a perceber o impacto positivo do precedente, tendo a defensoria pública começado a manejar e ganhar inúmeros outros casos de liberdade domiciliar semelhantes para centenas de mães miseráveis e esquecidas no sistema, com filhos abandonados à própria sorte.
Ficou, portanto, o precedente e a certeza de que a lei não pode ter nome, assim como o processo não pode ter capa.
A defesa tem a mais absoluta convicção de que o Dr. Paulo Maluf só está cumprindo pena dessa forma cruel, tendo sido impedido de ver seu recurso analisado, suas provas absolutórias submetidas ao pleno do STF, por ser quem é. Espera-se então que, pelo menos nesta discussão que está posta na sociedade brasileira, aqueles sem rosto, sem voz e sem vez, esquecidos e abandonados nas mazelas do sistema penitenciário, e cujas situações de idade e de saúde se assemelham à do Dr. Paulo, possam ter o direito humanitário a um tratamento justo, correto, solidário e que possam também ter o direito à prisão domiciliar.
* São advogados do deputado Paulo Maluf (PP-SP), preso para o cumprimento de pena no Complexo Penitenciário da Papuda.
Por fim, acreditamos que derrotar politicamente Paulo Salim Maluf em 1985 abria inúmeras possibilidades novas para o reencontro do país consigo mesmo. Era uma circunstância política e ele representava um símbolo a ser vencido, mesmo que os insultos que lhe atribuíram fossem típicos das disputas eleitorais. Hoje, convivemos com a Democracia prática que surgiu a partir dali. Não uma Democracia teórica, cheia de frases de efeito, abstrata e bem intencionada: é a Democracia real que surgiu com a Nova República. E o caso do Dr. Paulo Maluf está aqui a nos perguntar: o que fizemos com Ela? Para onde A estamos levando? Então era para isso que derrotamos Maluf em 1985: para usar o arbítrio contra ele em 2017? Triste fim. Tempos estranhos.
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay
Marcelo Turbay Freiria
Liliane de Carvalho Gabriel