Márcia Denser*
Uma antiga e cínica crença da elite brasileira reza que "princípios e escrúpulos são para os pobres" (subentendendo que quem tem dinheiro pode e deve dispensá-los) pois, ao que tudo indica, foi ela quem fundamentou a mais feroz campanha de denúncia à corrupção política promovida pela mídia contra um governo constituído, bom-mocismo, intolerâncias petistas e cinismo irracional elitista à parte.
Supunha-se que a população ficaria indignadíssima com a pouca vergonha revelada por mensalões & quejandos. Ledo engano. Nos anos 2000, o povão não mais se indigna, tampouco se mobiliza por isso, não um povo alicerçado na filosofia da malandragem, na estratégia do jeitinho, na lógica de "levar vantagem em tudo".
Antigamente, talvez, quando era menos numeroso e menos povo, mais pequeno-burguês, aquele que acredita na lei, na ordem e no progresso, que reza, vai à missa, joga no bicho, sonha com a casa própria. Esse é quem se indigna. Ou se indignava por volta das décadas de 30 ou 40, quando era o zé povinho, constituindo o grosso do eleitorado, a síntese da população.
Em 1970, éramos "90 milhões em ação". Quer dizer, de 1500 a 1970, foram necessários 470 anos para atingirmos tal cifra. Mas de 1970 a 2000 só precisamos de 30 anos para dobrar este número: hoje somos mais de 180 milhões, e aumentando. Vertiginosamente. Mas nestes últimos 30 vertiginosos anos também dobramos em termos infra-estruturais, em áreas como saúde, educação, moradia, oferta de emprego, bens de consumo, alimentos, transportes, para suportar tanta gente? Ou o que expandiu, inchou e explodiu exponencialmente foram os bolsões de miséria ao redor das grandes cidades?
Esse crescimento desenfreado, sem nenhum planejamento, tem suas razões e raízes em estratégias políticas sumamente perversas, sumamente canalhas. Por exemplo, no pós-puritanismo neoliberal implantado desde os anos 80 pelo acordo Theatcher/Reagan/Vaticano, ao qual nossas elites governantes aderiram fer-vo-ro-sa-men-te, sem se importar com as conseqüências que, de qualquer forma, recairiam sobre o zé povinho. Acordo empenhado na destruição dos movimentos de libertação das minorias e dos povos subjugados – índios, negros, mulheres, homossexuais – do Terceiro Mundo, da América Latina, que é o que nos interessa especificamente.
Tais estratégias neoliberais pós-puritanas incluíam um elenco de medidas, a começar pela proibição do aborto (querem maior violação do privado, no caso, o corpo, pelo poder público?) e condenação de quaisquer outros métodos contraceptivos em nome da "religião", "do direito à vida", enquanto, através da miséria decorrente, condenavam à morte e à doença essa população carente.
Conseqüentemente, tais estratégias promoviam, aplaudiam até (não vêem as novelas da Globo? os filmes norte-americanos c e d?) a gravidez indiscriminada nos países da América Latina, incluindo a infantil, a indesejada, a de risco, como se dissessem "fodam-se vocês aí no Terceiro Mundo! É assim que queremos a raça de vocês: descalça, grávida e na cozinha do inferno!". O recado era (é) claro para qualquer idiota remotamente inteligente.
O objetivo era (é), em nome da modernidade (modernidade de quem, cara pálida?) derrotar quaisquer idéias e políticas progressistas, desde o marxismo, o feminismo até a teologia da libertação, colocando-as em descrédito, ridicularizando-as, chamando-as antigas, old-fashion – porque, acima de tudo, o neoliberalismo como ideologia aspira à vitória no interior da batalha discursiva. Em todos os níveis, portanto, o objetivo era (é) destruir tudo o que promovesse a melhoria da qualidade de vida das famílias do Terceiro Mundo que precisavam (que precisam) ser mantidas a todo custo na escravidão e na escuridão da miséria, da ignorância, da massificação desordenada e desmoralizante.**
Contudo, a demografia ao explodir, exorbitar seus limites quantitativos, se transforma qualitativamente, torna-se instável, imprevisível, escapando ao controle dos meios de dominação de massa, dos sincronizadores sociais, como os jornais e a televisão.
Princípios? Escrúpulos? Para quem?
Para o PCC? Que é outra decorrência dessa demografia inflada, instável, aliada à tecnologia (que também não tem mãe) que inexoravelmente se reorganiza em novos organismos, tipo governo paralelo? Para o PCC como conseqüência inevitável da explosão populacional carcerária (e respectiva política neoliberal peessedebista) em São Paulo, que entre 1970 e 2000 quase decuplicou, de 15.000 para 141.500 presos?***
Princípios? Escrúpulos? Para quem?
Para os milhões de eleitores do presidente Lula beneficiados por seus programas sociais – que funcionam, diga-se – e que são tudo o que têm a separá-los da fome e da miséria absolutas?
Então pensando nessa população carente, que são milhões, pensando numa população carcerária condenada ao desespero, que são milhares, pensando em mim mesma que votarei em Lula até porque não há outra opção, porque a outra opção é o retrocesso e as demais, mero oportunismo – sorry, Heloísa Helena – me ocorre aquela frase do escritor russo Soljenitsen: "Tire do homem tudo e ele estará novamente livre, dê-lhe uma amante e uma casa na praia e ele estará acorrentado para sempre".
Raciocinando cinicamente, o fato é que os lacaios do sistema no Brasil – os políticos neoliberais, os "intelectuais de auto-ajuda", os "transgressores a favor", os "revolucionários conservadores", além das peruas que lêem a Veja e do Diogo Mainardi – com essa distribuição de renda na faixa de Serra Leoa, são muito poucos para fazerem alguma diferença.
**A respeito da destruição da teologia da libertação na Nicarágua e na América Central, da restauração da escravidão no Haiti, veja-se Noam Chomsky, Poder e terrorismo, Record, Rio, 2005; sobre o neoliberalismo como teoria e como discurso, consultar Pierre Bourdieu, Contrafogos, volumes 1 e 2.
***Revista Caros Amigos, PCC, edição extra, 28/05/2006.