Eu costumo brincar com o fato de ter sido um cara “Cult”. Creio que desdenhar da puxação de saco, das informações superficiais, da vaidade metida a chique e da mentirada que envolve essa gente sem viço dos cadernos ilustrados, significa, antes de qualquer coisa, adotar um posicionamento político. Escrevi até uma receita para o candidato(a) a celebridade fofa do momento (“Receita para ser um escritor fofo”) alcançar o êxito e a superficialidade correspondentes. Não consigo me segurar quando me perguntam sobre processo de criação,quais minhas influências e quem é o novo gênio da praça. Numa entrevista recente e muito oportuna que Walber Schwartz fez comigo, curiosamente para um lugar chamado Cult Blog, eu falei sobre isso. Ele começou lembrando da época em que eu era o queridinho dos segundos cadernos, início dos 00. Eu lhe respondi o seguinte: “Quanto ao fato de ser incensado pelos críticos, bem, eu tinha de desautorizá-los para provar que eles tinham razão, entende? E isso começou a acontecer quando publiquei minhas primeiras crônicas na AOL. Queimei meu filminho “cult” mas me diverti um bocado”.
E me divirto até hoje. Às vezes, admito, excedo na fanfarronice, mas continuo apostando no meu talento. Eu sei das implicações e conseqüências dessa minha postura. E pago o preço numa boa.O problema é que outras pessoas estão pagando o preço no meu lugar. Tava pensando nisso quando, nessa última quinta-feira, assistia o genial Alberto Guzik no palco dos Satyros 1 interpretando minha Velha Apresentadora. Eu pensava: “A minha fanfarronice nada tem a ver com o texto que o Guzik está falando… já faz mais de dois meses que a Velha entrou em cartaz e até agora a peça não foi criticada num veículo de massa. Por quê? As pessoas tem que saber o que está acontecendo. Cadê o público? Por que eu só ouço falar no filme da Lília Cabral e no tornozelo fraturado do Rogério Ceni?”
Será que não basta a um autor ser autor? Ele tem que ser solícito também, andar nos eixos, deixar-se fotografar pelas colunas sociais, ir a festas e eventos, ver e ser visto? Para ser autor no Brasil o cara tem que agir feito um vereador de currutela? Tem que trabalhar nos bastidores, estar nos lugares certos, vestir o figurino da ocasião, não correr riscos e jamais falar o que pensa? Não basta escrever um livro, uma peça? A arte não tem vida própria?
Eu me tornei um mestre em dificultar as coisas para mim mesmo. Não vou negar que isso me dá um certo prazer. Mas não se trata apenas de um caso simplório de masoquismo. Desfruto desse prazer porque acredito que a arte não se justifica fora do que ela é por si mesma.
Também não sou nenhum santinho. Eu sei que tem muita gente que não vai com as minhas fuças, e que têm motivos de sobra para querer me ver pelas costas: o que eu posso fazer se adquiri o hábito de dar o troco em dobro? Se neguinho me sacaneou vai ser sacaneado também, pego pesado, além de ser masoquista por ética, sou sádico por natureza – e isso é problema meu. O texto que o Guzik está falando no palco não deveria ter nada a ver com o autor que o escreveu, que por um azar da vida, sou eu mesmo.
Jornalista não tem que dar o troco, tem que dar a notícia. A partir dessa constatação, resolvi fazer um breve retrospecto das coisas que aconteceram comigo nos últimos anos até chegar ao Guzik de quinta-feira passada, excepcional na pele da Velha Apresentadora.
Vamos lá. Usufruí da sensação de ser a bola da vez. Fui duas vezes ao programa da Marília Gabriela. Passei a ser notícia, e meus livros eram resenhados pelos articulistas mais importantes do país. Mas eu fazia questão – como disse ao Walber – de desautorizá-los, tripudiava nas entrevistas e cometi o grande erro de acreditar que o talento prevaleceria em detrimento do oba-oba. O auge dessa fase de deboche foi uma entrevista que dei ao jornal O Estado de São Paulo. O nome da coisa: “Antologia Pessoal”. Uma espécie de questionário proustiano tropicalizado em que personalidades do meio cultural desfilam suas erudiçõezinhas para impressionar o leitor de domingo do Caderno 2. Muita gente metida a civilizada torceu o nariz para mim.
Como é que eu podia sujar um “espaço tão nobre” ? Sujei mesmo, e me diverti um bocado. Em primeiro lugar, porque sou um ingênuo e continuo acreditando nos livros que escrevi e nos livros que vou escrever, e, depois, porque, sinceramente, quero que os suplementos culturais dos jornalões e os nerds e as bichinhas culturais que os fazem, quero que todos eles – inclusive e sobretudo o leitor bunda-mole desses jornais que freqüenta a Casa do Saber e a festa de Paraty – quero mais é que todos eles vão para a putaqueospariu. Acho que é o mínimo o que um escritor livre e independente poderia desejar e efetivamente pôr em prática. Foi o que fiz. Eu jamais perderia a oportunidade de zoar com esse caipiras metidos a ilustrados,e não me arrependo do que fiz. Por mim, não.
O Guzik e o público é que não deveriam ter nada a ver com isso. Acreditei na minha obra e reconheço que fui um tolo. E daí? Tornei-me o pavor das antecâmaras, o louco dos bastidores, até que ,aos poucos, fui sendo – digamos – “menos solicitado”. No começo, virei uma figura excêntrica(era um jeito que os “meus pares” ajambraram para me administrar): “Ele é bom, mas não sabe o que diz”. O bom louquinho. Mas para mim era pouco. Eu queria mesmo era chutar o pau da barraca. De bom louquinho passei a ser o ressentido,o invejoso e o filho da puta. Nem sei como sobrevivi. Aliás, não sobrevivi. Tô aqui de alma penada, pura teimosia e talento.
Eis que os príncipes da clamídia, não satisfeitos apenas em me condenar pessoalmente, resolveram condenar minha obra também, ignorando-a. Penso que estão defendendo o lado pessoal deles – que nada tem a ver com jornalismo. E´nojento mas é previsível. Nada mais fazem do que garantir a cocaína de boa qualidade e garantir o respectivos jogos de poder. O problema é que agora é tarde demais. Sou cria deles, uma espécie de Bin Laden dos cadernos culturais.
Uma passagem curiosa, e esclarecedora. Não é a primeira vez que acontece. Dessa vez aconteceu logo depois da peça dessa quinta, num lugar neutro chamado rodoviária do Tietê. Um garoto me aborda e cobra novos livros: “Mirisola! Você tem de continuar a escrever!” Então lhe falei dos meus últimos livros, e disse inclusive que tinha uma peça minha em cartaz no Satyros 1. Ele fez o seguinte comentário: “Mas eu não li nada na Folha”.
Tirando o ridículo da situação e dos parâmetros adotados, é mais ou menos isso o que poderíamos chamar de realidade. Para um autor existir tem que ter a chancela dos grandes jornais, e do circo que se arma e se desdobra em volta. E eu tive essa chancela – repito – , e a ridicularizei o quanto pude. Existe um evidente contra-senso diante do estardalhaço em torno dos meus primeiros livros e o silêncio constrangedor de agora, que quer ignorar meus últimos trabalhos, e esse contra-senso é a prova cabal de que eu estava certo, isto é, de que ridicularizei quem merecia ser ridicularizado. Elogio e recusa remetem a falsificação; estamos diante das famosas duas faces da mesma moeda.
E aqui vai um conselho para você que é a bola da vez: não existe imparcialidade – apenas afagos que mais tarde vão lhe exigir a contrapartida. Se você não for bonzinho, e se você não cumprir o itinerário das bichinhas culturais ,ou seja, se não retribuir aos afagos, vai dançar. Não acredite nos elogios, a menos que você seja um verme. Aí, bem, nesse caso, qualquer coisa é bem-vinda. Até mesmo as críticas fundamentadas e, no limite, até mesmo ser solicitado como um verme.
O Homem da Quitinete de Marfim e o Proibidão ( com exceção dos distantes Correio Braziliense e do quase sumido JB) foram solenemente desprezados pelos jornais de São Paulo e Rio de Janeiro.
Jornalis