O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) deu prazo de 90 dias para que os tribunais de Justiça dos estados organizassem concursos públicos de seleção de tabeliães. A medida foi adotada pelo conselheiro Francisco Falcão, corregedor nacional do CNJ, e merece aplausos de quem, como nós, sempre pugnou pela moralização da gestão pública. Infelizmente, os cartórios constituem um dos exemplos mais eloquentes de desvios e descumprimento da Constituição Federal.
Em admirável reportagem publicada pelo jornal O Globo no último dia 1º, vieram a público fatos verdadeiramente estarrecedores sobre a situação de grande parte dos cartórios do país. A titularidade de muitos deles continua a ser transferida por força de laços de família, ao arrepio da regra constitucional que estabelece o concurso como forma de provimento dos cargos notariais. Para se manterem na irregularidade, tabeliães interessados em burlar os ditames da Carta de 1988 recorrem a subterfúgios. Mas há algo que nos anima a acreditar que essa vergonha está com os dias contados: a disposição com que o CNJ enfrenta o problema, que atinge quase todo o país e se perpetua na maioria das vezes graças à conivência dos tribunais de Justiça, que, ignorando a Constituição, concedem medidas liminares aos interessados em continuar à frente dos cartórios como titulares “biônicos”, já que nunca fizeram concurso para o cargo.
Essa espécie de vitaliciedade dos tabeliães brasileiros remonta à origem dos cartórios no país. A instituição foi criada com o fim de registrar as terras ocupadas na época da colonização portuguesa pelos que delas simplesmente tomavam posse ou as recebiam em doação pela Coroa para aqui se instalarem e ajudarem a desenvolver o país. Assim como aquelas terras, os cartórios destinavam-se aos “amigos do rei” e tornaram-se um negócio de família, que prosperou e enriqueceu gerações de privilegiados. Em muitos casos, em pleno século XXI, esses privilégios se mantêm firmes e fortes, por incrível que pareça.
O registro cartorial moderno, tal como o conhecemos, data de meados do século XIX, quando foi instituído, revigorado ou modernizado em diversos países, como Brasil, Espanha e Portugal. No Brasil de hoje, os cartórios vão muito além da função original de registrar. Eles são a mais efetiva máquina de fiscalização tributária do país. Ninguém pode comprar ou vender legalmente um imóvel sem que a transação seja imediatamente informada à Receita Federal, pelo notário ou pelo registrador, para verificação da compatibilidade entre as declarações de renda e o patrimônio. Nenhuma escritura é lavrada se não for apresentada certidão de regularidade em relação ao pagamento do IPTU do imóvel, além de comprovada a baixa do imposto de transmissão, ITBI. Se o negócio tiver sido feito por instrumento particular, este não será registrado sem as mesmas comprovações. Não bastasse tudo isso, nenhuma construção é averbada sem comprovação de recolhimento das contribuições previdenciárias dos operários que trabalharam na obra, mediante a apresentação, ao Registro de Imóveis, da Certidão Negativa de Débitos (CND) do INSS.
Ainda há mais: não fossem os registradores civis, que informam gratuitamente ao INSS todos os óbitos ocorridos no mês, o sistema previdenciário brasileiro deixaria de economizar milhões de reais com a suspensão imediata do pagamento de benefícios que, sem a informação prestada pelos cartórios, continuariam a ser pagos indevidamente.
O fato é que, graças aos atos que os cidadãos são obrigados a registrar em cartório, mais o cumprimento de exigências como reconhecimento de firma ou autenticação de documentos, os cartórios são verdadeiras minas de ouro, das quais os donos – ou titulares – não querem abrir mão de jeito nenhum. Daí o sistemático descumprimento da determinação constitucional do concurso público como forma de preencher as vagas de tabelião, notário ou registrador, conforme a função é denominada.
De acordo com a reportagem de O Globo, “os cartórios privados formam uma fortaleza corporativa, avessa à transparência. Não informam o faturamento anual, nem abrem os livros de atos, alegando o direito à privacidade. Só os ofícios extrajudiciais de Rio e São Paulo, somados, ganharam R$ 5 bilhões no ano passado, de acordo com cálculos não oficiais”.
PublicidadeA cruzada do CNJ contra as mordomias cartoriais começou em 2010, quando o Conselho declarou vaga a titularidade de 5.561 dos 14.964 cartórios extrajudiciais de Notas, Registro Civil, Registro de Imóveis e Protesto de Títulos, o que abriria caminho para o preenchimento das vagas por concurso público. A reação veio na forma de uma chuva de liminares que impediu a realização dos concursos por algum tempo em muitos cartórios. Atualmente, segundo o CNJ, ainda existem 2.209 cartórios – 16,5% dos 13.355 cartórios do país – comandados em caráter provisório por substitutos ou interventores.
Agora, o CNJ volta à carga, exigindo a realização de concurso público para preenchimento das vagas em todos os cartórios de treze estados e do Distrito Federal ocupados em caráter provisório por tabeliães que “herdaram” os cargos de parentes, de forma irregular, segundo O Globo. A determinação foi dirigida aos tribunais de justiça, sob pena de abertura de processo disciplinar contra os desembargadores que mantiverem as irregularidades. Além do Distrito Federal, os concursos deverão ser realizados nos estados de Alagoas, Amazonas, Bahia, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Paraíba, Piauí, Rio Grande do Sul, Sergipe e Tocantins. Em 15 dias, os tribunais desses estados deverão enviar ao CNJ cópia da publicação da última lista de vacância da titularidade dos cargos, conforme determinou o ministro Francisco Falcão.
Essa é mais uma ação moralizadora do CNJ voltada a recuperar a credibilidade dos órgãos judiciais e extrajudiciais, caso dos cartórios brasileiros. Falei em cruzada, mas, na verdade, trata-se de verdadeira guerra, contra descarada mordomia que não tem cabimento no Brasil pós-Constituição de 1988. Vou além: o que está em jogo são os interesses da sociedade, na medida em que há íntima relação entre a qualidade dos serviços prestados pelos cartórios à população e a gestão deles por profissionais preparados e regularmente aprovados em concursos de ponta. Em regra, estados que nunca fizeram concurso amargam serviços de péssima qualidade, em contraste com cartórios geridos por profissionais regularmente aprovados, como ressalta o tabelião André Guerra, presidente da Associação Nacional de Defesa dos Concursos para Cartórios.
Exemplo típico de mordomia escandalosa é o que ocorreu em Goiás, há alguns anos, quando o Detran presenteou o 1º Tabelionato de Protesto de Goiânia com a exclusividade das alienações fiduciárias de veículos no estado. A medida, que se traduziu em faturamento de R$ 2 milhões mensais, só foi derrubada há pouco tempo. O titular do cartório beneficiado pela decisão do Detran é um dos tabeliães que assumiu o cargo por “herança”, com a morte do pai tabelião, nos anos 1980. Ele se mantém no posto desde então, salvaguardado por decisões do Tribunal de Justiça de Goiás, mesmo após a promulgação da Constituição de 1988.
Se você pensa que isso é tudo, está enganado. Os “donos” de cartório continuam brigando para não perder os milionários redutos. Primeiro, no Congresso, tentaram a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional 471/2005, chamada “PEC dos Cartórios”. Depois de muita luta, perderam a parada, quando a proposta foi rejeitada. Note bem: a PEC 471/2005 “simplesmente” efetivava, sem concurso público, os substitutos e responsáveis por cartórios designados para os cargos até 1994, desde que ocupassem a função nos últimos cinco anos.
Derrotados no Congresso, os “donos” de cartório lutam agora no Supremo Tribunal Federal (STF), ainda segundo O Globo, para convencer os ministros a embarcar numa das teses mais malucas – e desonestas – que já apareceram por lá em toda a história da Corte. Os tabeliães inventaram – pasmem – um tal de “usucapião de função pública” para justificar a permanência no cargo: as nomeações sem concurso feitas há mais de cinco anos não poderiam ser revogadas segundo os princípios da “boa-fé” e da “segurança jurídica”. Como diria o velho filósofo: arre, égua!
No Supremo, a tentativa de “golpe” falhou quando a então ministra Ellen Gracie, hoje aposentada, rejeitou a tese, na condição de relatora, e foi seguida pelo plenário. Hoje a relatora do processo é a ministra Rosa Weber. No entanto, com a apresentação de embargos declaratórios, o processo está com o ministro Dias Toffoli, que pediu vistas dos autos. A boa notícia é que Toffoli já votou a favor da realização de concurso em outras oportunidades. Espera-se, pois, que ele seja coerente em seu voto.
Vamos aguardar os acontecimentos, na expectativa de que o STF ponha uma pá de cal nessa pouca vergonha. Os concurseiros que tratem de se preparar para concorrer às vagas que serão abertas nos cartórios de todo o Brasil daqui a três meses, com a decisão do CNJ de obrigar a realização de concurso público nos cartórios irregulares.
Quem quiser concorrer, que comece logo a se preparar. O concurso é de alto nível e exige sólida preparação. As provas dividem-se em três fases: a primeira é seletiva, a segunda é escrita e prática e a terceira é oral. Somente depois de ser considerado aprovado em todas essas provas, o candidato é nomeado e toma posse como titular de uma serventia.
Se você, caro leitor e concurseiro, está interessado, comece a estudar desde já, imediatamente! Prepare-se para ser, no futuro, um notário concursado, que poderá ostentar, com muito orgulho diante da sociedade, o seu feliz cargo novo.