Celso Lungaretti *
Como seria reconstituir, à maneira dos quebra-cabeças, encaixando peça por peça, uma das mais trágicas e bizarras trajetórias de militantes da resistência à ditadura de 1964/85?
Foi mais ou menos como Bram Stocker procedeu no seu clássico Drácula, só que usando registros inventados.
Vou tentar fazer essa montagem a partir dos registros verídicos de dois livros sobre trajetórias de militantes da luta armada: A trilha do labirinto (Inojosa Editores, 1993, relançado no ano passado pela Editora Bagaço), do companheiro Chico de Assis, ex-PCB e PCBR; e o meu Náufrago da utopia (Geração Editorial, 2005).
Vamos, pois, à história de Cláudio de Souza Ribeiro, personagem secundário, mas marcante em ambas as obras, referido pelo Chico como “Caio” e por mim como “Matos”.
Da infância difícil à luta armada (em A trilha do labirinto)
“… uma infância pobre, muito pobre, moleque num subúrbio do Recife, o pai alcoólatra, degradado, diariamente no boteco, o rosto e os olhos vermelhos, inchados, a fala pastosa.
“… a mãe altiva, ainda bonita, arrimo de família com suas costuras, disfarça cada vez menos a irritação que lhe causa ver os pingos do seu suor transformados na pinga do marido cachaceiro.
“(um dia eu largo tudo e me mando com você pelo mundo)
“ameaça que acabou cumprindo, para o mal ou para o bem, Caio não sabe, sabendo apenas que se viu acompanhando a mãe, na terceira classe de um navio, rumo a Belém do Pará, quando viveu talvez seu primeiro grande trauma, o envolvimento da mãe com um companheiro de tripulação.
“… outros fatos também presentes na formação de uma personalidade visivelmente psicopática [são] a entrada na Marinha, a percepção de zombaria por parte dos outros marinheiros nos banhos coletivos, sobre o tamanho do seu pênis.
“… rejeitava agressivo a provocação, mas não conseguia com a mesma facilidade expulsá-la de dentro de si, quando sozinho se depara com o pênis, de fato pequeno, começando a acumular complexos e frustrações que teriam de explodir como explodiram, sobre a cama, na cama, na primeira tentativa de relação sexual que fizera.
“(puxa, bem, pra levantar esse aí – disse a puta – só com guindaste) não esperando a violenta bofetada que se seguiu e a cena histérica de Caio segurando-a pelos braços em constantes safanões.
“… comportamento de que se arrependia depois, mas que se foi repetindo a cada novo insucesso, até que se decidiu pelo outro extremo, o de evitar o problema evitando as mulheres e sublimando tudo na política, que começara a fazer, ainda antes de 64, no movimento sindical dos marinheiros, quando conviveu com o cabo Anselmo.
“Caio se ligou a ele sem pestanejar, transformando-se num de seus homens mais próximos, tanto que os dois foram cassados juntos, logo depois de 64, viajando então para Cuba, onde fizeram o mesmo curso de guerrilhas e fabricação de explosivos, separando-se apenas na volta, quando Caio se ligou diretamente ao comando do capitão Lamarca (…) o líder maior da Vanguarda Popular Revolucionária – VPR, (…) onde Caio ocupa posição de destaque, sobressaindo-se em ações cada vez mais espetaculares, que vão aos poucos criando, entre os dirigentes e intermediários da organização, a mística de revolucionário de novo tipo, compensatória da decepção que experimentam quando se deparam com Caio no dia-a-dia, porque aí ele era uma personalidade dificílima de conviver, como se estivesse permanentemente em guarda contra tudo e contra todos.”
Como militante da VPR (em Náufrago da utopia)
“O congresso de abril da VPR tem lugar em Mongaguá, no litoral sul paulista [abril/69]. Júlio [ou seja, eu mesmo, CL] viaja junto com Cláudio de Souza Ribeiro (Matos), um dos remanescentes dos movimentos de marinheiros que foram um dos estopins do golpe de 1964.
“O ex-marujo é uma figura impressionante, com sua calça cinza e paletó azul-marinho. Gagueja um pouco e tem um jeitão meio insano. Mesmo quando calmo e amistoso como agora, deixa perceber que é um homem explosivo. Refere-se aos adversários na Organização – a derrotada corrente do professor Quartim – como se fossem inimigos. Dá impressão de que seria capaz de matá-los a porradas.
“Ao mesmo tempo, tem um passado revolucionário dos mais ricos. No ônibus, conta episódios fascinantes como o do primeiro roubo de banco executado pela VPR:
— Nós, os ex-militares, estávamos todos sendo procurados, era difícil arrumar emprego. Chegou um ponto em que não havia mais como conseguir dinheiro para o dia a dia. Então, resolvemos expropriar um banco. Naquele momento foi por necessidade mesmo, não como uma opção política. Levamos duas ou três semanas preparando tudo, vigiando a agência, estudando cada detalhe. Adiamos várias vezes, sempre surgia algum imprevisto. Um dia não tínhamos dinheiro mais nem pra comer, então decidimos: é hoje! Lá dentro deu tudo certo. Mas o pessoal estava tão afobado que quase foi embora me deixando pra trás. Tive de correr atrás do veículo…
“Segundo ele, foi alguns assaltos depois que a VPR, após muitas discussões internas, decidiu assumir essas expropriações, espalhando panfletos nos locais. E assim, meio sem querer, a vanguarda passou a desenvolver ações armadas, com o exemplo da VPR logo inspirando a ALN e outras organizações.
“Do passado mais remoto, Matos diz que o plano de Che Guevara na Bolívia era criar um eixo guerrilheiro cortando a América do Sul de lado a lado. No Brasil, cabia a Leonel Brizola ativar uma guerrilha no Mato Grosso:
— Ele embolsou o dinheiro dos companheiros cubanos e fez aquela palhaçada em Caparaó só pra disfarçar. Da forma como ele armou aquilo, só podia cair mesmo. Então, todos nós rompemos com o Brizola. E os cubanos botaram nele o apelido de el ratón…
“[durante o congresso de Mongaguá] os quadros mais duros são os que exibem descontrole. Lamarca e o marinheiro Matos (…) desabafam em meio ao congresso. Queixam-se das circunstâncias terríveis em que vivem, como feras acuadas; da solidão; das traições dos companheiros que estariam sabotando a revolução etc. Problemas políticos e pessoais misturados.
“[em junho/69] a VPR está finalizando os entendimentos com o Colina — Comando de Libertação Nacional, organização surgida em Minas Gerais e que tem atuação marcante também no Rio de Janeiro.
“Logo em seguida, a confirmação: ambos os comandos decidiram somar forças, constituindo a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares [VAR-Palmares]. Adiante, essa fusão será homologada por um congresso em que todos os militantes estarão representados.
“O novo Comando Nacional tem seis membros, três de cada origem. Incumbidos da luta principal, a implantação de uma coluna móvel estratégica, estão Lamarca e Matos (VPR), mais o casal Juarez Guimarães e Maria do Carmo Brito (Colina).
“[durante o Congresso de Teresópolis, no qual a fusão seria homologada] as posições massistas vencem em toda linha. Há algumas discussões acaloradas, Matos se descontrola, mas não consegue deter o avanço da direita. A VAR-Palmares sairá desse congresso empenhada em recriar os laços orgânicos com as massas, sem conferir à montagem da coluna móvel estratégica a prioridade que ela precisa ter para sair do papel.
“Quando já se discute a constituição do novo comando, (…) Lamarca (…) resolve romper com a VAR e recriar a VPR.
“Sete militantes saem da VAR para reagrupar a VPR: Lamarca, Mário Japa, Matos, Darcy, Nóbrega, Moisés e Júlio.”
Rompe com a VPR para levar vida de civil (em Trilha)
“… [convertia-se] em várias ocasiões num tirano insuportável que não reconhece deveres, apenas direitos, e provoca constantes transtornos com suas reclamações e caprichos, atuando assim na organização, até conhecer Clea, uma militante de base que revelou interesse e curiosidade por conhecer o que já é visto como novo prodígio revolucionário da VPR, pela frieza, pela audácia, pela agilidade reveladas num sem-número de ações e particularmente pela esquisitice, que, segundo afirmam, contorna sua vida pessoal.
“tratava-se da relação entre duas pessoas com níveis diferentes de participação na luta, fadada (…) a enfrentar (…) conflitos no percurso.
“(não dá mais, meu nego, o cerco tá se fechando e eu não tenho nível pra suportar a clandestinidade de vocês) ela comunicou aflita, depois de informar que fora procurada na universidade, não tendo sido presa por questão de minutos.
“[é enorme] o desespero que o consome ao imaginar sua vida sem ela, principalmente sua vida sexual sem ela, a mulher que o levantara da definitiva condenação à impotência, vencendo pelo carinho, pela compreensão, pela absoluta indiferença com que reagira aos primeiros inevitáveis insucessos dele.
“… dois meses depois de sua saída de São Paulo, já integrada no Recife e em vias de conseguir colocação [em] uma empresa em ascensão no Nordeste, encontra-se com Caio.
“(rompi com o pessoal, querida, e vim ficar com você) (…) revelando até mesmo um certo fascínio pela história de se transformar num cidadão comum, com trabalho e residência conhecidos, empolgação que a confundiu e a fez pensar talvez fosse ainda possível viajar nas asas da ilusão que se desfez na primeira crise provocada pelo tédio e pela fulminante ação do sentimento de culpa que começava a corroê-lo implacavelmente, a cada morte ou queda de que ele toma conhecimento, escandalizando a vizinhança (…), reproduzindo a bebedeira do pai e fazendo com que ela se distancie paulatina e irremediavelmente.
“propensa às confidências e aos desabafos com os companheiros de trabalho, um deles fatalmente terminaria atraindo-a para um novo relacionamento que não teve forças ou não via razão para omitir de Caio.”
Mata a companheira e entrega-se à polícia (em Náufrago)
“Matos, o ex-marujo que foi com Júlio até Mongaguá e chegou a ser comandante tanto da VPR quanto da VAR-Palmares, acabou justificando o apelido que tinha na Associação dos Marinheiros: Cláudio Louco. Abandonou a luta para viver com sua amada nos confins de Pernambuco. Ao descobrir que era traído, matou a companheira e se entregou à polícia, em agosto de 1971.
“Comparece a um julgamento com olhar perdido. Mantêm-no algemado durante toda a audiência, ao contrário dos demais réus. Dois policiais tomam conta dele o tempo todo.”
Penitenciária Barreto Campelo, Itamaracá/PE (em Trilha)
“[companheiro de prisão do Chico de Assis] Caio era capaz de invadir repentinamente uma cela onde estivéssemos reunidos e a título apenas de alimentar suas manias extravagantes de perseguição, declarar que a partir daquele momento só falaria com fulano ou sicrano, deixando a todos atônitos, mas ainda porque dias depois ele se arrependia da atitude e voltava a conviver normalmente com todos.
“[depois de ouvirem o relato pungente de suas desgraças, os outros presos políticos acabaram] selando com Caio uma espécie de acordo tácito, a partir do qual eles compreenderiam e terminariam perdoando todas as extravagâncias, idiossincrasias e dificuldades de convivência que ele viesse a manifestar no longo trajeto carcerário que todos viriam a percorrer até a liberdade, não imaginando então que a de Caio seria conquistada em fuga espetacular e única entre os presos políticos do Estado”.
O desfecho, em 2009: encontro marcado com o destino
Para terminar, acrescento o que o Chico me contou por e-mail, diante do interesse que, após ler seu livro, manifestei sobre Matos, nosso conhecido comum.
Por exemplo, que, no seu desespero por ter matado Clea, Matos chegou a pedir aos canalhas do DOI-Codi que o executassem, recebendo como resposta: “Aqui não morre quem quer, só quem a gente quer”.
Depois de um início difícil, ele acabou se integrando ao círculo de prisioneiros políticos de Itamaracá, só vindo a fugir porque, com a anistia, seria entregue à Justiça comum, como assassino. Não admitia ficar preso junto com bandidos.
Sumiu no mundo.
O que terá feito nas duas décadas seguintes? Há rumores de que contatou um ou outro grupo de esquerda, nada tendo resultado.
O desfecho veio numa mensagem do Chico, há alguns meses: finalmente, Matos se resignou ao destino que há tanto o aguardava, cometendo suicídio.
Faz alguns dias, fui ver se encontrava pormenores de sua morte nas buscas da internet. E verifiquei que ele é citado só de passagem, numa mísera dezena de registros. Nem imagem achei!
Não me surpreendeu. Matos foi um inimigo terrível para a direita e um personagem constrangedor para a esquerda. Todos preferem vê-lo relegado ao esquecimento.
Menos o Chico de Assis e eu. Ambos desprezamos essa mentalidade de avestruzes, essa moral das conveniências – que revolucionária não é, nem um pouco.
A verdade, sim, é revolucionária, como bem dizia Rosa Luxemburgo.
E Matos, depois de ter sido privado de tantas satisfações simples dos mortais ao longo de sua sofrida vida, não merece ser despojado também do seu papel na História.
Pois, apesar das óbvias limitações, fez tudo que estava ao seu alcance para combater a ditadura mais tacanha e brutal que este país já conheceu.
Merece respeito por sua luta e compaixão pelas suas desventuras.
* Jornalista e escritor, Celso Lungaretti mantém os blogues Náufrago da Utopia e O rebate.