Márcia Denser*
Paulo Emílio Salles Gomes, o grande crítico de cinema morto em 1977, assinalava na década de 60 que a chanchada brasileira, malgrado o grande sucesso de público, não era propriamente considerada cinema, pois cinema para valer era o que vinha dos Estados Unidos ou da Europa, isto é, seria tudo aquilo que não produzíamos e que valorizávamos de um modo um tanto subalterno. É o que ele chamava "situação colonial do cinema brasileiro".*
Aliás, enquanto o crítico americano ou europeu dialogava em tempo real com os diretores dos filmes em pauta, o brasileiro não dispunha dessa referência, de modo que só lhe restava a confissão de mitologias e manias de aficionado. Objetivamente, seus interlocutores eram a ignorância do público, a estupidez da censura, o mau gosto dos distribuidores e a simpatia do seu grupinho de adeptos.
Tratava-se de um bem engrenado sistema de alienações que imprimia a "marca cruel do subdesenvolvimento" em todos os que se ocupassem da crítica de cinema no Brasil. Sobretudo o próprio Paulo Emílio. Segundo Roberto Schwarz, esse argumento resume com extrema propriedade a situação que o nacionalismo desenvolvimentista queria superar no campo da cultura, pois o divórcio entre aspiração cultural e condições locais é um traço cultural de ex-colônias.
Posteriormente, surgiu a consciência de que a exploração de classe no plano interno e as grandes desigualdades na ordem internacional se alimentavam reciprocamente e que era preciso examiná-las em conjunto. Na época, Glauber Rocha formulou sua "estética da fome", onde reivindica, sim, a miséria do Terceiro Mundo, mas para lançá-la na cara dos cinéfilos europeus como parte do mundo deles, como um momento significativo do mundo contemporâneo e não apenas outro exotismo próprio de regiões distantes ou sociedades atrasadas.
Ficou claro nos anos 80 que o nacionalismo desenvolvimentista havia se tornado uma idéia vazia, ou seja, uma idéia para a qual não havia dinheiro. A verificação recíproca e crítica entre as culturas tradicional e moderna não ocorreu ou aconteceu nos termos lastimáveis das conveniências do mercado. Passado o esforço nacional de acumulação, o que se viu foram sacrifícios fantásticos para nada: usinas, ferrovias, edificações fantasmas que, a despeito de tudo, não desmoronam com as ilusões ou negociatas que as tiraram do nada. Chamaram-se "pós-catastróficas" essas sociedades que se mobilizaram a fundo para modernizar-se e não conseguiram.
Pós-Glauber, pós-nacionalismos, pós-catástrofe surge "o cinema da retomada" do qual Cidade de Deus tornou-se emblemático, projetando o que ocorreu com o Brasil. Onde, por exemplo, as piores desumanidades adquirem sinal positivo quando saem na mídia, aliada para romper a barreira da exclusão social.
É interessante notar que à visão glauberiana, ampla, universalista, de todo modo uma visão utópico-modernista,sucede uma visão pós-moderna que privilegia o fragmento. Schwarz observa que no mundo fechado de Cidade de Deus as esferas superiores do negócio de drogas e de armas, a corrupção política e militar, que lhes assegura espaço, não aparecem, bem como a administração pública e a especulação imobiliária que estão na origem da favela.
Em pauta mais recente, tais "ocultamentos" se repetem em variações sutis ou nem tanto, como nos seriados brasileiros Mandrake e Filhos do Carnaval, ambos produzidos para a HBO. O primeiro tentando vender – malgrado a produção sofisticada, a pretensão paródica (totalmente fracassada, diga-se), a retórica dos contracampos e jogos de cena – aquele velho produto exótico e pitoresco, na linha da chanchada pornô-turístico-carioca, fazendo absurda, surda e simultaneamente a louvação tanto das belezas quanto das torpezas locais.
O segundo, Filhos do Carnaval, em que pese o drama realístico, que se poderia denominar étnico-familiar (se quisesse ser filha-da-puta ou engraçadinha, algo fora de cogitação), fecha o ângulo. Permanece em âmbito fechado, asfixiante – é o que eu chamo de "filme com claustrofobia" – jamais abrindo a perspectiva sócio-política e conseqüente reflexão – mordendo o Brasil pela borda mais intangível, se é que me entendem.
* In Roberto Schwarz, Seqüências Brasileiras, 1999.