Hoje vou escrever uma coluna chique, vou me permitir um luxo de detalhes metafórico-metafísicos simplesmente podres de chiques, chiquérrimos, e isso significa que estarei escrevendo para poucos, raros e caros. Caríssimos, sigam-me.
Comecemos por aqueles sombrios frankfurtianos, Adorno e Horkheimer, cuja Dialética do Esclarecimento (título perfeito, não?) ensina que as principais vítimas do positivismo não são as noções metafísicas, mas os fatos a busca radical da secularização, o desvio exclusivo em direção à vida mundana o que naturalmente transforma a vida num processo abstrato anêmico, o mundo interior reduzido a menos zero, mais para buraco negro do que mundo, até porque buraco negro e consumismo têm tudo a ver, são praticamente sinônimos.
O que fica evidente na obra do Marquês de Sade (olha só que citação mais chique), onde a afirmação nua e crua da sexualidade vazia de quaisquer vestígios de transcendência espiritual transforma o sexo em mera ginástica desprovida duma autêntica paixão sensual, que é o que se busca desde que o mundo é mundo.
E não se percebe a mesma inversão no impasse do Indivíduo Pós-Moderno (ou Último Homem, de Nietzsche a Francis Fukuyama, ou Homo Otarius de Slavoj Zizek), que rejeita como terroristas todos os objetivos mais altos e dedica a própria vida a sobreviver, uma vida cheia de prazeres menores cada vez mais insípidos, artificiais? Na medida em que morte e vida designam filosoficamente duas posições existenciais subjetivas, e não fatos objetivos, então a questão se coloca: Quem está realmente vivo hoje?
Questão que se desdobra em outras, propostas por Slavoj Zizek (1): E se, ao nos concentrarmos na simples sobrevivência, mesmo qualificada como uma boa vida, o que realmente perdemos for a própria vida? E se o terrorista suicida palestino a ponto de explodir a si mesmo e aos outros estiver, num sentido existencial, mais vivo que o marine americano brincando sua guerra de vídeo game contra um inimigo invisível uma quase-probabilidade a centenas de quilômetros de distância ou um yuppie nova-iorquino fazendo jogging às margens do Hudson para manter a forma? E por fim: não seria a catástrofe que se teme o fato de, finalmente, alguma coisa realmente acontecer?Qualquer coisa?
O fato é que o grande perdedor nessa reiterada afirmação da Vida contra todas as Causas Transcendentes é a própria vida. O que torna a vida digna de ser vivida é o próprio excesso de vida: a consciência da existência de algo pelo que alguém se dispõe a arriscar a vida (algo a que chamamos liberdade, dignidade, honra, autonomia, etc). Somente quando dispostos a assumir esse risco estamos realmente vivos.
Chesterton (eu disse que seria uma coluna chique) discute a relação paradoxal da coragem: Um soldado cercado de inimigos, se tiver que abrir caminho, precisa combinar um forte desejo de viver com uma estranha despreocupação com a morte. Ele não pode apenas se agarrar à vida, pois nesse caso ficará paralisado e não conseguirá fugir. Se somente esperar a morte, será um suicida, logo também não vai conseguir se safar. Terá que buscar a vida com um espírito de furiosa indiferença a ela: desejá-la como água e ser capaz de beber a morte como se fosse vinho.
A postura sobrevivencialista pós-moderna do Homo Otarius termina num espetáculo anêmico, pobre, insípido, arrastando-se como sombra de si mesmo. Os que hoje afirmam o valor sagrado da vida, defendendo-a contra a ameaça de poderes transcendentes (ou chiques, eu disse que esta seria, etc.) que a inquietam, acabam num mundo supervisionado em que se vive sem dor, em segurança e tediosamente.
Um mundo em que, em nome do seu objetivo oficial uma vida longa e prazerosa todos os prazeres reais são proibidos ou estritamente controlados: toma-se café descafeinado, cerveja sem álcool, proíbe-se o cigarro (incluindo os baixíssimos teores), o que significa que se retira a essência das coisas para poder fruí-las o que deveria, repito, deveria constituir um Absurdo.
Portanto vive-se uma vida feita unicamente de efeitos especiais, uma vida literalmente sem causa, sem essência, sem sentido (semioticamente, sem significado, apenas significantes vazios) e sem (a tal palavrinha luxuosa, primordial nesta coluna tão chique) transcendência.
Recapitulando: café sem cafeína, creme de leite sem creme, cerveja sem álcool, sem contar o sexo virtual, o sexo sem sexo; a doutrina de Colin Powell da guerra sem baixas (do lado americano, claro), a guerra sem guerra; a redefinição contemporânea da política como a arte da administração competente, ou seja, a política sem política e por aí vai.
Em suma: a vida besta.
ET: Sobre o mesmo tema ver desta colunista o texto Os Últimos Dragões
(1)In Bem-Vindo ao Deserto do Real: S.Paulo, Boitempo, 2003