Fábio Góis
A legislatura atual (2007-2010), que chega ao fim amanhã (1º de fevereiro) com a posse dos novos congressistas, ficará marcada, entre outras deliberações legislativas, pela aprovação do projeto de iniciativa popular que impede candidatos com pendências judiciais de disputar cargos eletivos. A chamada Lei da Ficha Limpa (leia tudo sobre a Lei Complementar 135/10) teve longo e conturbado caminho no Congresso – e assim seguiu no Judiciário. Definitivamente aprovado na Câmara em 11 de maio de 2010, e oito dias depois no Senado, o Projeto de Lei Complementar 58/2010 seguiu para sanção presidencial envolto em rumorosa polêmica.
Na tramitação no Senado, uma emenda apresentada ao projeto provocou controvérsia e erros de interpretação após a divulgação de seu teor. De autoria do senador Francisco Dornelles (PP-RJ), a interferência no texto original – aprovado por unanimidade na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e referendado pelo plenário – incide apenas no tempo verbal existente na descrição das aplicabilidades da futura lei complementar.
Em linhas gerais, a emenda ajusta as regras de forma que elas não firam a norma jurídica de que uma lei não pode retroagir para aplicar penalidade. Em cinco itens registrados no documento, os termos “tenham sido [condenados, demitidos, excluídos etc.]” foram substituídos por “os que forem condenados”, ou seja, a referência passa para o tempo futuro – o que gerou interpretações de alguns de que a lei só valeria para quem fosse condenado após a sanção do projeto de lei.
O então presidente Lula sancionou a Lei da Ficha Limpa rapidamente, sem vetos, em 4 de junho. Em 10 de junho, o Tribunal Superior Eleitoral já havia decidido pela validade para as eleições de outubro. Mas o Supremo Tribunal Federal, com um ministro a menos (os titulares são 11), ficou simetricamente dividido sobre o tema – o que gerou uma série de recursos contra a aplicação imediata da nova lei.
Mesmo assim, depois de todo o imbróglio jurídico, seus efeitos foram sentidos por diversos candidatos, atendendo aos anseios da sociedade. Atingidos pela aplicação imediata, nomes como Jader Barbalho (PMDB) e Joaquim Roriz (PSC), ex-governadores de Pará e Distrito Federal, ficaram impedidos de seguir adiante com seus planos. O primeiro até venceu a eleição para o Senado, mas foi impedido de tomar posse segundo a nova lei. Já Roriz desistiu de voltar ao GDF, pôs a mulher em seu lugar e, de mãos atadas, viu sua derrota nas urnas.
“Imposto do cheque”
O primeiro ano do segundo mandato do presidente Lula não foi o que ele sonhou para pavimentar sua reta final no poder. Em dezembro de 2007, a oposição no Senado conseguiu evitar a prorrogação da cobrança da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), em uma sessão que adentrou a madrugada em plenário – com alíquota de 0,38% e incidente em qualquer operação bancária, o imposto rendia cerca de R$ 40 bilhões anualmente ao governo, e deixou de ser cobrado em 31 daquele mês.
Relembre a queda da CPMF
Foram apontadas como principais razões da derrota a fragmentação da base de apoio ao governo e o caráter coeso da oposição à época. Para aprovar a CPMF, eram necessários 49 votos. Os governistas conseguiram apenas 45. Ou seja, por apenas quatro votos, o imposto não foi prorrogado em primeiro turno.
Em muitas ocasiões, o Senado dificultou os planos de Lula na última legislatura: eram 34 senadores de oposição, além daqueles que, embora integrantes da base aliada, agiam à revelia da orientação partidária – caso de dois peemedebistas emblemáticos, Pedro Simon (RS) e Jarbas Vasconcelos (PE), co-fundadores do partido.
Mesmo assim, Lula e seus companheiros no Congresso obtiveram aprovações importantes. Na mesma madrugada da votação da CPMF, por exemplo, o governo conseguiu ao menos a continuidade da Desvinculação de Receitas da União (DRU). Com a aprovação da matéria, ficou assegurado o instrumento que, excluindo-se a obrigatoriedade da destinação setorizada de recursos (saúde e educação), permite ao governo aplicar da maneira que bem entender 20% dos recursos do Orçamento.
Relembre quem derrubou a CPMF e quem manteve a DRU no Senado
Águas (e divergências) profundas
Outro momento de êxito governista no Congresso foram os projetos de lei que estabeleceram as regras de exploração, produção e comercialização das novas jazidas de petróleo descobertas em águas profundas – o chamado marco regulatório do pré-sal, camada de combustível fóssil localizada em grandes profundidades, na região que se estende da faixa litorânea do Espírito Santo até Santa Catarina.
Anunciadas em 31 de agosto de 2009, em cerimônia prestigiada em Brasília, as diretrizes foram encaminhadas ao Congresso na forma de quatro projetos de lei, em polêmica tramitação que levou mais de um ano até ser definitivamente concluída.
Os projetos que mais demoraram a ser apreciados – o que cria o Fundo Social do Pré-sal e o que estabelece o modelo de partilha – foram aprovados em 2 de dezembro (leia mais). Antes disso, foram aprovados o processo de capitalização da Petrobras, que concentra as operações, e a criação da Petro-sal, empresa 100% estatal que vai gerenciar os contratos de exploração de petróleo.
O principal problema enfrentado pelo governo foram os interesses opostos dos estados produtores e dos não produtores na repartição dos royalties (repasses compensatórios) do petróleo. Isso levou a base governista a enfrentar dificuldades para unificar os aliados, grupo que reúne representantes de todas as regiões do país, em torno da aprovação da proposta.
O impasse foi a emenda apresentada pelo deputado Ibsen Pinheiro (PMDB-RS) ao Projeto de Lei 5938/09, também assinada pelos deputados Humberto Souto (PPS-MG) e Marcelo Castro (PMDB-PI), justamente o que alterou o sistema de distribuição dos royalties e da participação especial dos contratos de exploração já existentes, além daqueles a serem executados na camada pré-sal. Ao contrário da regra anterior, que concentra o pagamento dos royalties nas regiões produtoras, Ibsen propôs uma distribuição nacional igualitária. Com isso, estimou-se que somente o Rio de Janeiro perderia R$ 7 bilhões da sua receita anual.
Em 11 de março de 2011, o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, chegou a chorar pelas perdas do estado com a alteração do modelo de partilha (confira o vídeo). A saída foi a apresentação de uma emenda, pelo senador Pedro Dimon (PMDB-RS), para compensar prejuízos aos estados produtores de petróleo, bem como aos municípios afetados.
Professores, pais adotivos, juristas
A legislatura que finda serviu para a aprovação de alguns projetos que, se não atingem o ideal dos propósitos, ao menos atendem parte dos anseios de determinados setores da sociedade. Entre elas a Lei da Adoção – que, por sinal, foi a iniciativa mais mencionada entre as melhores de 2010 segundo jornalistas que cobrem política, consultados em votação da quinta edição do Prêmio Congresso em Foco (relembre quais foram).
A nova Lei da Adoção foi sancionada pelo presidente Lula no último dia 3 de agosto. Originária do Projeto de Lei do Senado 314/04, da senadora Patrícia Saboya (PDT-CE), a Lei 12010/09 criou mecanismos para permitir que o processo de adoção ocorra de forma mais acelerada, acabando com as longas esperas de crianças e pais adotantes. A nova norma impede que os menores fiquem mais de dois anos em abrigos e torna obrigatória a apresentação de um relatório semestral sobre as crianças para ser enviado a um juiz, que decide pela reintegração familiar ou pela colocação para adoção.
Também merece destaque a definição do piso salarial nacional dos professores, de autoria do senador e ex-ministro da Educação Cristovam Buarque (PDT-DF). Aprovado em plenário em 2 de julho de 2008, e levado ao então presidente Lula no dia seguinte, o piso estabelecido era de R$ 950,00, mas foi reajustado no início de 2010 para R$ 1.024,67 (aumento 7,68%), referente a 40 horas semanais. Estimou-se à época que, com a sanção presidencial, mais de 800 mil professores receberam um aumento imediato nos salários.
Mais recentemente, em 15 de dezembro, o Senado foi palco da aprovação, em votação simbólica (consensual e sem conferência de votos), do anteprojeto de atualização do Código de Processo Civil (CPC), promulgado em 11 de janeiro de 1973 (Lei nº 5.869). Apresentada sob a forma de Projeto de Lei do Senado 166/10, a proposição não recebeu emendas e seguiu para a análise da Câmara.
A reformulação do CPC havia sido delegada a uma comissão de juristas capitaneados pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça Luiz Fux, com o objetivo de promover a simplificação e a agilização da Justiça, eliminando procedimentos processuais que retardam sentenças judiciais. “O principal avanço do código foi a eliminação de uma série de formalidades que faziam com que o processo demorasse muito. Foi também conferir forças à jurisprudência dos tribunais superiores, permitindo que em um contencioso de muitas ações idênticas as soluções sejam iguais. E, acima de tudo, permitir que o processo tenha uma duração razoável, que o cidadão consiga entrar e sair da Justiça vendo o resultado palpável”, disse Fux ao Congresso em Foco, logo depois da aprovação da matéria.
A votação foi feita em sessão esvaziada depois da aprovação, entre outras matérias, do projeto de decreto legislativo que equipara ao teto salarial do país (R$ 26,7 mil) os rendimentos mensais de deputados, senadores, ministros, presidente e vice-presidente da República.
Componente eleitoral
Segundo o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP), a produção legislativa de 2010 foi inferior àquelas registradas desde 2007. No ano passado, 164 leis foram editadas, número bem inferior aos anos anteriores: 255 leis em 2009; 259 em 2008; e 198 no primeiro ano da legislatura. Vale mencionar que boa parte destas leis foi fruto de proposição iniciada não no Legislativo Federal (Câmara e Senado, responsável por 87 leis em 2010), mas no Executivo, no Judiciário, no Tribunal de Contas da União, no Ministério Público e até na sociedade civil – caso da Lei da Ficha Limpa.
Além disso, a qualidade da produção do Parlamento deixou a desejar. “A classificação das leis por iniciativa de poder ou órgão demonstra que o Congresso, pelo segundo ano consecutivo, ultrapassou o Poder Executivo em quantidade de leis, embora a qualidade das leis de autoria dos congressistas, com raras exceções, deixe muito a desejar. Elas cuidam, majoritariamente, de homenagens e datas comemorativas”, aponta Antônio Augusto de Queiroz, diretor do DIAP, em artigo publicado em 23 de dezembro.
Além das próprias limitações parlamentares conjunturais, avalia Antônio, as eleições de 2010 também prejudicaram a apreciação de projetos. “A legislatura foi contaminada pela disputa eleitoral, que encerrou um ciclo de oito anos. Sempre que isso acontece, a oposição se articula para ganhar a eleição, porque esta é a chance que ela tem”, declarou à reportagem o analista político, para quem a instituição da reeleição, no governo Fernando Henrique Cardoso (1994-1998; 1999-2000), dificultou o trabalho das oposições.
“O presidente [da República], se estiver bem, será reeleito”, acrescentou Antônio, para quem PSDB e DEM, principais adversários do governo petista, ainda não exercem adequadamente o papel de oposição – o que leva a “prejuízos legislativos”. “Houve uma atuação em duas frentes: uma criando uma crise interna, dentro do próprio Congresso [referência velada a casos como o dos atos secretos do Senado e a farra das passagens, descoberta pelo Congresso em Foco]. Depois, [a oposição] não deixou deliberar, obstruindo sistematicamente as votações. Assim, criaram toda sorte de dificuldades para o governo, e isso paralisou a legislatura.”
O “dedo sujo” e o “coronelzinho de m…”
Em seus 186 anos de existência, o Senado talvez nunca antes tenha passado por uma crise tão grave e duradoura como a de 2009: a Casa mal havia assimilado o golpe das reportagens sobre a farra das passagens quando, depois de reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, descobriu-se que a cúpula administrativa operava, desde 1995, centenas e mais centenas de procedimentos administrativos clandestinos – os famigerados atos secretos, que levaram à queda do diretor-geral até aquele ano, Agaciel Maia, e do diretor de Recursos Humanos, João Carlos Zoghbi.
O presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), que tinha em Agaciel seu homem de confiança, também quase caiu. Foram 11 os pedidos de cassação de mandato ajuizados contra ele no Conselho de Ética da Casa – todos arquivados pelo fiel escudeiro Paulo Duque (PMDB-RS), então presidente do colegiado, com o aval da “tropa de choque” peemedebista que reunia nomes como Wellington Salgado (MG) e Almeida Lima (SE). Apesar da grita (quase) geral.
Bom lembrar que, em setembro de 2007, o então presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), correu o risco de ser cassado. Diversas denúncias o acometiam e, por consequência, pioravam a já fraca credibilidade da instituição. Mas, na contramão da opinião pública, 40 votos favoráveis o absolveram na fatídica sessão secreta, no dia 12. Foi a única vez, aliás, em que todos os 81 senadores se reuniram em plenário, como este site mostrou em reportagem sobre assiduidade publicada na última quarta-feira (26).
Leia: Senado só esteve completo para absolver Renan
Voltando aos atos secretos. A temperatura estava alta. A oposição e até figuras independentes da base queriam a saída de Sarney – que permanece firme em seu “sacrifício” à frente do Senado. A dramaticidade da situação provocou, então, discussões acaloradas, reuniões tensas, agressões e xingamento em plenário. E, sempre testemunha dessa e das outras histórias do Congresso, este site leva ao internauta três vídeos que, se não a traduzem naqueles dias, mostra como uma Casa de leis não deve se portar.
Renan Calheiros e Tasso Jereissati se xingam no plenário…
…Pedro Simon enfrenta os “olhos de fogo” de Fernando Collor…
…e Eduardo Suplicy dá “cartão vermelho” a Sarney