Márcia Denser*
Nesse janeiro modorrento a assinalar a entrevista de Luís Fernando Veríssimo na revista Caros Amigos. Não o conheço pessoalmente para além daqueles acenos formais entre escritores que se cruzam inevitavelmente em bienais do livro, lançamentos e paratys, mas poderia defini-lo com dois ou três adjetivos: sóbrio, talvez modesto, mas certamente político. Que, segundo o Aurélio, é “delicado, polido, cortês” e, também, “astuto, esperto”. Enfim, um mix de cortesia e esperteza, um cronista refinado da melhor linhagem.
Mas lá vão alguns de seus melhores momentos:
Lula analfabeto? – “Olha, com algumas exceções como o Costa e Silva, que confundia latrocínio com laticínio, fomos sempre governados por homens letrados, muitos deles intelectuais de nome, que conseguiram construir o país mais desigual e injusto do mundo sem cometer um erro de concordância”.
Ditadura – “Fazia uma crônica para o rádio e nunca sabia quais assuntos iam passar ou não pela censura. Uma vez cortaram uma referência ao Chico Buarque, outra ao Darwin. Talvez achassem que Darwin lembraria evolução, evolução lembraria macaco e macaco lembraria gorila e falar de militar não podia.”
Sociedade & Campeonato Brasileiro – “Foi um bom ano para a torcida do Corinthians em todas as áreas, como no aumento da renda e diminuição do desemprego, menos no futebol.”
Esquerda, Brasil, Cuba, Venezuela & Bolívia – “Entende-se que a direita brasileira seja obcecada por Cuba e, agora, pelo Chávez, mas não é preciso imitar sua radicalidade, a favor ou contra. O governo Lula, a mesma coisa, só que nesse caso a gente tende a ser mais a favor do que contra para não engrossar o coro dos reacionários que já é suficientemente grosso. Esse tal novo populismo na América do Sul é importante menos pelo que é do que pela sua origem, o fracasso das políticas neoliberais recentes em cima de todos os anos de descaso social das elites do continente, que agora têm que enfrentar os Chávez e os Morales e outros monstros que criou. Já a esquerda brasileira continua como sempre foi, dividida.”
Direita & Mídia – “A virada à direita da imprensa brasileira coincidiu com a substituição da máquina de escrever pelo computador nas redações, quando o barulhento trabalho braçal nas máquinas, que podia identificar os jornalistas com o proletariado, deu lugar a um sóbrio ambiente de banco, liquidando com a velha idéia de que num jornal era todo mundo de esquerda até o nível de redator-chefe e de direita daí para cima.”
Humor & PT – “Na medida em que poucos governos foram tão anarquizados na história do Brasil e a figura do Lula se presta a caricaturas, imitações e gozações como poucas outras, aumentou o humor no país. A popularidade de Lula contribui para isso, ou isso contribui para a popularidade do Lula. Tem gente que se diverte com ele, vê as bobagens que ele diz como prova de bonomia e autenticidade. Fora os DEM, acho que está todo o mundo se divertindo mais no Brasil. Os banqueiros, então, nem se fala.”
Utopias & Declínio da Razão – “Gosto daquela frase de Chesterton segundo a qual quando as pessoas deixam de acreditar em Deus não passam a acreditar em nada, mas a crer em qualquer coisa. Há uma retribalização da humanidade em curso e a guerra entre os monoteísmos é apenas uma das evidências disso. As utopias pelo menos pressupunham um desejo de organização social pela razão ou pelo altruísmo, mas o desejo dominante hoje parece ser o de embotamento da razão por um sentimento tribal, qualquer que seja. A causa pela qual vale à pena lutar é uma idéia de sociedade, daquilo que a Margaret Thatcher dizia que não existe, uma idéia de comunidade e justiça compartilhadas, acima das ambições individuais e da moral do mercado”.
Economia & Irrelevância da Política – “A economia, pelo que leio e ouço, vai melhor agora do que ia sob um governo abertamente neoliberal, o que leva a concluir que o PT está sendo eficiente na sua incoerência. Essas contradições e o pouco efeito que as denúncias de corrupção tiveram na avaliação do governo Lula só reforçam aquela idéia da irrelevância crescente da política num mundo dominado pelo capital financeiro. A crítica, a sátira, etc. acabam sendo sobre nada muito pertinente ao que realmente importa.”
Uma lucidez irônica que, em nome da honestidade básica do escritor, não poupa até mesmo o humor político do cronista, confere relevo, densidade, possivelmente sabedoria a este gaúcho, que já não julgo tão mineiro, quando desce do muro.