O retorno de João Capiberibe (PSB-AP) ao Senado foi saudado pelos parlamentares de esquerda e por grande parte da plateia que estava ontem nas galerias do Senado. É, de fato, algo a ser saudado: Capiberibe é um político diferenciado. Homem de convicções de esquerda, perseguido pela ditadura militar, autor de uma lei importantíssima, a Lei da Transparência, que obriga que as administrações – em todos os níveis, federal, estaduais e municipais – publiquem informações sobre os seus gastos.
Capiberibe só tomou posse como senador agora porque estava inicialmente barrado pela Lei da Ficha Limpa. Antes das eleições do ano passado, ele e sua mulher, a deputada Janete Capiberibe (PSB-AP), tinham sido cassados num controvertido processo por compra de votos. Condenado no processo pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Capiberibe perdeu parte de seu mandato anterior como senador e, como fora condenado por um órgão colegiado da justiça, estava, conforme a Lei da Ficha Limpa, inelegível. Capi, como é chamado, voltou agora ao Senado por conta da confusão que o Supremo Tribunal Federal fez no julgamento da ficha limpa: deixou a eleição acontecer sem regra e, depois, decidiu que a lei não valia para as eleições do ano passado. Assim, candidatos que estavam enquadrados na lei, como Capiberibe, disputaram sub-júdice e, com a decisão final do STF, recorreram para poder ser diplomados e tomar posse.
O caso de Capiberibe sempre provocou incômodo nos defensores da ficha limpa. Porque havia a desconfiança de que a denúncia contra ele era uma armação. Há a acusação de que as testemunhas que depuseram contra ele e Janete foram compradas. Se assim foi, Capiberibe tem todo o direito de se considerar vítima, e de comemorar, como comemorou, seu retorno ao Senado. Mas Capiberibe pisou feio na bola quando resolveu criticar, por conta do seu caso, a Lei da Ficha Limpa, numa entrevista exclusiva que concedeu ao Congresso em Foco.
Na entrevista, Capiberibe diz que o problema da Lei da Ficha Limpa é que ela judicializa a escolha do eleitor. E ele diz, então, que o eleitor, caso queira, tem todo direito de votar num candidato desonesto, e ninguém pode questionar ou coibir esse direito.
O senador do Amapá faz aí uma simplificação meio absurda do cenário político brasileiro. Como se nós vivêssemos numa democracia plena, imaculada. Uma simplificação que ignora problemas complexos, que João Capiberibe não tem o direito de ignorar. Bastaria a ele olhar para alguns companheiros da sua própria bancada do Amapá para concluir que a escolha do eleitor no Brasil ainda não é tão livre assim como se gostaria.
Em primeiro lugar, a democracia brasileira, por conta dos nossos seguidos intervalos autoritários, ainda está em processo de maturação. Em segundo lugar, sua construção tem sido uma briga constante em busca de maior espaço da sociedade, que a elite política briga para não entregar de jeito nenhum.
Nos primeiros anos da nossa República, era preciso ter dinheiro para votar e ser votado. A participação política exigia uma comprovação de renda. Ou seja: a política era um jogo apenas da elite brasileira. Somente após a Constituição de 1988 o analfabeto passou a ter direito a voto. Hoje, temos 14 milhões de analfabetos, o que significa que a cidadania até outro dia ainda estava vetada a quase 10% da população brasileira.
A consequência do formato dessa nossa construção política é que o cidadão comum passou a sentir-se alheio a esse jogo. Ainda hoje, não são poucos os que desconhecem a força que tem seu voto. Imaginar-se candidato, então, nem pensar.
Até porque, na maioria dos casos, a maior parte das pessoas não conseguiria mesmo se tornar candidata a um cargo eletivo. Porque precisaria submeter-se às exigências dos partidos, em eleições que são caríssimas. Eleger um deputado federal em qualquer cidade grande já custa mais de R$ 1 milhão.
Então, por mais que tenha evoluído nesses 122 anos de República com apenas 86 anos de democracia, o jogo político continua sendo um jogo das elites, na maior parte dos casos.
Antes de simplificar a argumentação, dizendo que o eleitor tem direito de votar em um candidato desonesto, seria preciso saber, diante de toda essa constatação, que opções ele de fato tinha para a sua escolha. Segundo, que informações foram dadas a ele para chegar a essa escolha: o processo permite ao eleitor saber exatamente que candidatos são honestos e quais não são? Finalmente, a partir de um processo que sempre buscou deixar boa parte do eleitor alheio às questões políticas, com a noção de que o ato de votar, mais que um direito, é um dever chato e aborrecido, o eleitor já tem suficiente educação política, suficiente noção de cidadania, para que se conclua que a sua escolha num político desonesto foi absolutamente consciente?
A Lei da Ficha Limpa estabelece um filtro moralizador, que vai se somar a outros filtros que já existem. É para evitar o uso da máquina pública na campanha que há prazos de desincompatibilização de cargos que têm de ser respeitados. Relações de parentesco também geram inelegibilidade por razão semelhante: o parente no poder poderia usar a máquina pública para ajudar na eleição. Casos flagrantes de abuso de poder econômico também implicam cassação de mandatos e de candidaturas. Por que tudo isso? Justamente porque se sabe que todos esses fatores – e muitos outros – corrompem a livre escolha do eleitor. A Lei da Ficha Limpa é mais um filtro a se somar a esses. O que a sociedade ganha com a escolha de políticos desonestos? Ainda mais quando se sabe que tal escolha, longe de ser totalmente livre como quer Capiberibe, é definida por uma série de distorções que ainda existem no processo político brasileiro.
PS: Se não bastarem meus argumentos, sugiro uma olhada, numa linha bem semelhante, na coluna de hoje do doutor Márlon Reis, do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE)
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