“Pode mandar vaso de guerra,
disto até acho graça:
por causa da lagosta
até eu vou sentar praça”
(autoria desconhecida)
Celso Lungaretti*
Um atestado de nosso subdesenvolvimento político e mental, pior e mais duradouro do que o econômico (o qual, dizem, já superamos, embora eu não veja como nação desenvolvida uma que tem distribuição de renda tão desigual e IDH tão vexatório) é a absoluta incapacidade de colocarmos valores e princípios acima dos interesses imediatos.
O que conta são os beneficiários e prejudicados em cada episódio; racionálias oportunistas servem apenas como munição, daí a frequente incongruência com a posição adotada anteriormente, quando a mesma situação básica se reapresenta mas são outros os personagens envolvidos.
Refiro-me, claro, à batalha de Itararé (1) ou à guerra da lagosta (2) que ora torna anedótico e retrô nosso noticiário político.
O mais comezinho bom senso e o espírito de justiça (do qual todos deveríamos estar imbuídos, segundo Platão) são mais do que suficiente para sabermos que é totalmente inconcebível o exercício de mandato popular por parte de um presidiário, durante o cumprimento da pena.
Fiquei pasmo ao ver quatro doutos ministros do Supremo Tribunal Federal admitindo implicitamente tal sandice, que avacalharia de vez a imagem do Judiciário aos olhos do cidadão comum.
Faz até sentido discutir-se se o mandato, em caso de condenação, deve ser definitivamente extinto ou temporariamente suspenso (ou seja, se o parlamentar teria de ser cassado ou poderia apenas licenciar-se).
Mas, no braço de ferro que se esboça entre o STF e a Câmara, alguém tem de ceder, em benefício de uma democracia penosamente reconquistada e que não deve ser colocada em risco em função de pendenga tão bizarra.
A intransigência é insustentável: se a Câmara não aceita que o STF extinga mandatos arguindo a independência dos Poderes, o STF pode recorrer ao mesmíssimo argumento para não liberar os deputados presos quando houver sessões da Câmara.
No fundo, trata-se de mera pirraça do presidente da Câmara, cuja verdadeira objeção é ao desfecho do julgamento do mensalão.
Desfecho que previ antes mesmo do seu início: a partir da existência de algumas provas e confissões de delitos, o rolo compressor da imprensa burguesa faria o resto, tangendo os ministros do STF para a condenação, independentemente de quanto os petistas e seus aliados esperneassem.
Também na ocasião sugeri aos companheiros do PT que, ao invés de tentarem convencer a opinião pública da inocência dos réus (tarefa impossível enquanto a indústria cultural continuar fazendo a bel prazer a cabeça da maioria bovinizada), batessem pesado no fato de que práticas como as do mensalão eram e são regra, não exceção, na política brasileira.
Ao invés de tentarem, em vão, desacreditar o julgamento do mensalão, o que deveriam era exigir o mesmo rigor, tanto por parte das autoridades policiais quanto das judiciais, em todos os demais casos de corrupção política.
Infelizmente, o PT hoje não pode dar-se ao luxo de chutar o pau da barraca, pois o restaure-se a moralidade sangraria também suas fileiras.
Fica, portanto, nesse meio termo de fazer vaquinhas para pagar as multas dos seus condenados, mas evitar um confronto aberto com o STF, como o que o Zé Dirceu queria e o Rui Falcão abortou.
Mas, já que os partidos conservadores/direitistas e o PIG acabam de demonstrar cabalmente que o locupletemo-nos todos será sempre opção de risco para os petistas, eles bem que poderiam voltar às origens, cumprindo o que prometiam em 1979: serem os paladinos da restauração da moralidade.
Sem quaisquer ilusões de que bastariam políticos íntegros para redimir-se o Brasil, missão impossível sob o capitalismo.
Mas os homens de esquerda têm obrigação política e moral de serem os exemplos vivos de que outro mundo seja possível, deixando a lama para os inimigos de classe nela chafurdarem.
Saiba mais sobre a Batalha de Itararé e a Guerra da Lagosta:
1) 1930. As tropas insurgentes de Getúlio Vargas vêm do RS para tentar tomar a capital federal (Rio de Janeiro). Os efetivos leais ao presidente que elas querem depor, Washington Luiz, esperam-nas na cidade de Itararé, divisa entre SP e PR. Canta-se em prosa e verso aquela que será a mais formidável e sangrenta das batalhas.
Mas nem um único tiro é disparado: antes, o presidente bate em retirada, entregando o poder a uma junta governativa.
Ironizando, o grande humorista Aparício Torelly escreve que, como nada lhe reservaram no rateio de cargos governamentais entre os vencedores, ele próprio se outorgaria a recompensa:
“O Bergamini pulou em cima da prefeitura do Rio, outro companheiro que nem revolucionário era ficou com os Correios e Telégrafos, outros patriotas menores foram exercer o seu patriotismo a tantos por mês em cargos de mando e desmando… e eu fiquei chupando o dedo. Foi então que resolvi conceder a mim mesmo uma carta de nobreza. Se eu fosse esperar que alguém me reconhecesse o mérito, não arranjava nada. Então passei a Barão de Itararé, em homenagem à batalha que não houve”.
2) Desavença entre o Brasil e a França, meio século atrás, sobre a pesca em larga escala de lagostas na plataforma continental brasileira (mais detalhes aqui).
Um pesqueiro francês foi apresado por uma corveta brasileira e houve até mobilização militar: o presidente Charles De Gaulle enviou um navio de guerra para proteger os pesqueiros e o Brasil deslocou esquadrões de aeronaves para o litoral nordestino. Os dois lados escoravam-se em interpretações diferentes dos direitos de pesca de peixes e de crustáceos.
O “deixa disso” acabou prevalecendo, mas o patético da chamada guerra da lagosta municiou fartamente os humoristas. A melhor gozação foi a paródia citada no prólogo, de autoria desconhecida, da marchinha carnavalesca “Cachaça não é água”.
*É jornalista, escritor e autor do blog Náufrago da Utopia.