Marcelo Torres*
O título deste textinho, de início, seria “A tigresa do Caetano e o girafo do Drummond”. Queria eu brincar com as palavras “tigresa” e “girafo”, associando-as a seus criadores, o compositor e o poeta, que um dia ousaram usá-las em letra de música e crônica, respectivamente.
A tigresa do Caetano, claro, seria uma metáfora da metáfora; até porque, após dizer que se inspirou em Sônia Braga, e Zezé Motta, e outros ícones femininos, o autor disse também que tigresa era ele próprio – “A tigresa sou eu mesmo”, escreveu, parodiando Flaubert – “Madame Bovary sou eu”).
Mas acontece que eu sou baiano e, na Bahia (mas não só na Bahia), uma frase como “A tigresa do Caetano” teria duplo sentido (e pareceria homofóbica). Na Bahia e numa banda do Nordeste, nós não falamos do Caetano. Falamos de Caetano. Não usamos o do ou da para nos referirmos a alguém.
O do e o da, que para as pessoas do Sul, Sudeste e Centro-Oeste, parecem “corretos”, na verdade são típicos da linguagem oral, da fala informal, revelando proximidade do falante com a pessoa falada. Na Bahia, porém, por mais íntimos que sejamos de alguém, nós não usamos nem o do nem o da.
O CD não é do Gil, é de Gil; o DVD não é da Gal, é de Gal; e a tigresa é de Caetano. Numa rápida lembrança de obras literárias: Saramago escreveu “O ano da morte de Ricardo Reis”, e não do Ricardo Reis; Clarice narrou “A vida íntima de Laura”, e não da Laura; e Machado escreveu “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, e não do Brás Cubas…
E assim, pelo sim, pelo não, o autor tratou de tirar as preposições, e os artigos, e o girafo, e a tigresa. Deixou os dois nomes consagrados e uma conjunção entre eles. Mas, voltemos, pois, às palavras-chave deste texto.
Como já não são mais tão novos assim, pois foram usados pelos autores em 1977 e 1981, respectivamente, os dois termos já não são mais classificados como neologismos. Tigresa, de tão cantada e decantada, ganhou os dicionários, ainda que como brasileirismo – e assim passou a “existir”.
[Engraçado, para muita gente boa, inclusive literatos, se uma palavra não aparece nos dicionários, essa palavra “não existe” – mesmo existindo. Exemplo: a palavra “jega” não figura nos dicionário; logo, “não existe”, embora seja falada por uns 20 milhões de brasileiros]
E o girafo? O girafo, coitado, não é neologismo, nem gíria, nem brasileirismo. Apesar de ter sido usada por um dos maiores poetas de língua portuguesa (e repetida aqui neste texto), essa palavra não figura nos dicionários e, portanto, “não existe” [você, leitor ou leitora, não viu esse tal girafo por aqui, estamos combinados?].
Em artigo que está publicado em seu site oficial, Caetano admite, com outras palavras, que não sabia que tigre é epiceno, invariável em gênero. No dia em que fez a letra, ele via na TV um filme no qual um tigre-fêmea criava um garoto. “Pensei que tigre fêmea dizia-se tigresa”, escreveu ele.
Apesar do “erro” confesso de Caetano – que não sabia o feminino de tigre, ou seja, não sabia que tigresa “não existia” e, portanto, não sabia que estava “inventando” uma palavra -, esse termo pegou, fez um epiceno variar de sexo e até hoje “a tigresa” é tida e havida como uma célebre licença poética.
Licença poética foi o “girafo”, que Drummond sabia “não existir”. Na crônica “A solidão do girafo”, publicada no JB em 09.05.81, ele abordava a transferência da girafa-macho “Raio de Luz” do zoológico do Rio para o de Brasília, onde havia a única fêmea disponível no Brasil.
Tanto foi uma licença que, após usar o termo, o autor fez uma ressalva: “Sei que deformo teu nome, trocando a letra final, mas já é tempo de dissipar as ambiguidades das designações genéricas, em meio à indefinição crescente dos sexos, observada na sociedade humana”.
Com humor, Drummond propôs o seguinte: “Quando já não se sabe ao certo quem é varão, quem é varoa, pelo menos se saiba distinguir o pavão da pavoa ou pavona, o elefanto da elefanta, o sabiau da sabiá, o cisno da cisna, o tigro da tigra, em vez de nos socorrermos do aditamento macho e fêmea”.
Ô, que falta faz um poeta-cronista desse no nossa imprensa de hoje, hein! E Drummond completou: “Se distinguimos gato e gata, por que não foco e foca, tamanduó e tamanduá, tatu e tatua?”
Para concluir…
Há trinta anos, Drummond, embora de forma irreverente, defendia o uso de tigra, tatua, pavona e elefanta. Há mais de três décadas, ainda no século XIX, Caetano exaltava a figura feminina e criava um hino para a luta da mulher, uma mulher que “gostava de política em 1966”, e que dizia “ tudo vai mudar/ porque ela vai ser o que quis”, e que “a tigresa possa mais do que o leão”.
Enquanto isso, nos dias de hoje, quando pela primeira vez uma mulher chega ao Palácio do Planalto [a tigresa pôde mais que o leão], a palavra “presidenta”, mesmo estando nos dicionários há mais de século, por aqui foi dita “inexistente”; depois, após provada a sua “existência”, foi dita “coisa de mau gosto” e “coisa do PT”.
Depois da crônica do Girafo, se hoje aqui estivesse, é provável que Drummond, mineiro como a presidenta, usasse e aprovasse tal palavra. Na mesma linha, depois de Tigresa, presume-se que Caetano também a aprove. Ou não, vai lá saber!
Notinhas explicativas:
– O termo ‘criadores’, logo no início, está mais para criação artística do que para a invenção dos dois termos [se não sei nem quem inventou o mundo, como posso saber quem inventou o “girafo” e a “tigresa”?].
– Sobre os ditos, reditos e desditos de Caetano, está tudo no site dele: www.caetanoveloso.com.br.
– Na língua escrita e formal, o mais adequado é o “de”. Na oralidade, o “do/da” revela amizade, intimidade, aproximação.
– A palavra ‘presidenta’ está nos dicionários desde, pelo menos, 1872. Quem quiser saber mais, basta clicar aqui.
* Jornalista, baiano, e torcedor do Vitória