Márcia Denser*
A era Bush, que felizmente agoniza, tornou pública uma nova concepção das relações entre política e sociedade. Nela, os líderes norte-americanos da vez deixaram de lado não só a realpolitik, como também o simples realismo, tornando-se criadores da sua própria realidade, mestres das aparências, reivindicando o que poderíamos chamar de realpolitik da ficção – se isso não fosse um absurdo.¹
Então o discurso de Karl Rove, consultor de Bush, sempre que confrontado com os princípios das Luzes e do empirismo, ocorria mais ou menos nessa linha:
“Não é mais assim que o mundo funciona. Somos um império agora. E, quando agimos, criamos nossa própria realidade. Enquanto vocês estudam essa realidade, nós agimos de novo, criando outras novas realidades, que vocês podem igualmente estudar. É assim que as coisas se passam. Nós somos os atores da história. E a vocês, vocês todos, só resta estudar o que fazemos” (entrevista a Ron Suskind, publicada no New York Times, dias antes da eleição presidencial de 2004).
As pessoas a quem mostrei a declaração acima, todas elas, tiveram a mesma reação: sentiram-se profundamente ofendidas. Na base, na origem, um porre. Não havia palavras que exprimissem a terrível periculosidade decorrente de tal inflação do Ego Arrogante. Jeová, aquele do Mar Vermelho, o deus irado e o demiurgo estúpido do velho testamento, atacava de novo, dessa vez com Sentex.
A invasão do Iraque em março de 2003 constituiu um exemplo lapidar da vontade da Casa Branca de “criar sua própria realidade”. Preocupado em não repetir os erros da Guerra do Golfo em 1991, o Pentágono caprichou em sua estratégia de comunicação. Além dos quinhentos jornalistas embeded, a sala de imprensa do quartel general das tropas americanas no Qatar, que custou um milhão de dólares, era um moderníssimo estúdio de TV, com palco, telas de plasma e toda a parafernália eletrônica a produzir, em tempo real, imagens do combate, animações e gráficos, dirigido por um cineasta com passagens pela Disney, MGM e o Good Morning America. Ele também escolhia os cenários para as aparições presidenciais.
São estreitas e mais do que carnais as ligações entre o Pentágono e Hollywood, Jerry Bruckeimer (Piratas do Caribe) que o diga.
Segundo Ira Chernus, professor da Universidade do Colorado, durante os dois mandatos de Bush, Karl Rove praticou a “estratégia de Sherazade”, que é assim: quando a política os condenar à morte, comecem a contar histórias – tão fabulosas, tão cativantes, tão sedutoras que o rei (ou o cidadão americano que teoricamente governa o país) esquecerá sua execução. A aposta de Rove é que os eleitores ficarão hipnotizados por histórias ao estilo John Wayne, com “homens de verdade” combatendo na fronteira, e deixarão de proferir a sentença de morte contra um partido que os conduziu ao total desastre no Iraque, sem contar o colapso econômico que agora presenciamos.
A estratégia de Sherazade é uma pilantragem construída sobre a ilusão de que simples histórias moralizantes irão proporcionar uma sensação de segurança, independentemente do que aconteça no mundo.
De consciência limpa, de dever cumprido – farisaísmo tem mágoa – e o mundo que se lixe.
No mais: jogue o cigarro fora!
¹ In A estratégia hollywoodiana de George W. Bush por Christian Salmon, Le Monde Diplomatique, dez/2007.
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