Bajonas Teixeira de Brito Junior *
Em outros tempos se diria que era briga de cachorro grande e se aconselharia aos desavisados uma dose cavalar de prudência. Falo da atual briga entre os poderes para engordarem os próprios salários. Em um país em que os chamados “poderes” ganharam tal envergadura que se vê o prefeito de São Paulo num dia fazendo piada com uma tragédia, no outro, esbravejando contra um humilde paciente que não consegue uma consulta médica, tudo parece possível. Por isso mesmo, quem aconselha o temor diante dos nossos poderes — e, mais ainda, quem recomenda o pânico — está coberto de razão. Basta toda espécie de impunidade que defrontamos diariamente para nos convencer disso. “Prudência e caldo de galinha” poderiam constar, como capítulos especiais, em nossas obras de ciência política.
Mas existem os atenuantes. Por exemplo, a atual briga de cachorro grande, se bem considerada, mostra uma faceta curiosa: se apresenta como briga de cachorro magro. Como briga de cachorro magro, porque, não faz muito tempo, uma parte queria ganhar 100% de gordura e, a outra, anda dizendo que em comparação com o Congresso vive na penúria (leia mais). Cachorro gordo não teria tal precisão de puxar a brasa para sua sardinha. Ou, uma hipótese que vale a pena considerar, estamos diante de um caso de falsa magreza? Examinemos, com uma lupa, esses mamíferos mais de perto.
O Estado brasileiro mantém um arrocho em todas as frentes, diz que corta na própria carne. Muita gente tem sentido na carne a navalha do Estado. Há um exército, por assim dizer, de funcionários mutilados pela guerra do superávit fiscal, por um lado, e pela fome leonina do fisco, por outro. Mas aqui se trata de outra gente, os chamados "pés de cachorro", ou, para usar o prefixo da moda, neobarnabés. Falo, evidentemente, dos funcionários públicos.
Esses pés de cachorro, entre os quais modestamente me incluo, estão há muito tempo com os chamados "salários defasados". Ou seja, ganhando uma percentagem irrisória do que ganha seu confrade americano, alemão ou suíço. De certo a comparação pode parecer descabida. Quem não vê isso? Se o americano ganha x, e aqui, realizando a mesma função, ganhamos ¼ desse valor, isso não apresenta um problema nem para a matemática financeira nem para coisa nenhuma. Parecem parâmetros normais, já que, independente da saúde atual do Estado, vivemos num país periférico, subdesenvolvido etc. etc. Ninguém em sã consciência pretenderia, por exemplo, que um professor universitário brasileiro ganhasse o mesmo que seu confrade americano. É a ditadura dos fatos e contra a força dos fatos não há argumento. Seria ilógico. Até mesmo absurdo.
Como um neobarnabé poderia almejar sobrepor-se ao arrocho financeiro do Estado? Portanto, liminarmente, está fora de cogitação pensar nisso. Só a um louco ocorreria insistir nessa direção. Mas, se pensar é livre, podemos dar rédeas soltas à imaginação, adentrar nos domínios da completa insanidade e perguntar o que seria se um desses pés-rapados pretendesse ganhar mais que seu similar americano. Digamos que, apenas para manter o fio de prumo da demência, ele pensasse em 79% a mais. Certamente, o nosso beltrano, seja ele professor, médico, engenheiro, advogado ou qualquer outro profissional, estaria no mundo da lua, e isso já bastaria para uma comissão de inquérito recomendar o seu arquivamento em uma aposentadoria compulsória.
Mas, se falamos em fatos, penso que é preciso perguntar se louco seria ele ou se loucos somos nós, os que assistem calados os bate-bocas e desafios de botequim entre os poderes. Digo isso porque acabo de lembrar de uma matéria lida não faz muito tempo. Cito aqui a parte principal:
"Dados oficiais do governo norte-americano cruzados com os brasileiros mostram que o salário da presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ellen Gracie, é 79% maior do que o do seu par nos Estados Unidos, o chefe da Suprema Corte. A comparação foi feita pelo economista gaúcho Júlio Brunet, da Secretaria da Fazenda do Rio Grande do Sul, a partir dos valores informados no site do US Department of Labor – o Ministério do Trabalho dos EUA. Em 2005, de acordo com as estatísticas americanas, o chefe da Suprema Corte recebeu uma remuneração anual de US$ 205,1 mil. No Brasil, o salário básico da ministra Ellen Gracie vale US$ 296,6 mil (ou R$ 326,6 mil convertidos pela paridade do poder do real em relação ao dólar). Com o aumento de 5% previsto para o próximo dia 1º de janeiro e a criação do jetom de R$ 5.865 pela participação no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Ellen passará a receber uma remuneração de US$ 367,5 mil (ou R$ 404,7 mil anuais) – sem contar outras vantagens, como auxílio-moradia e alimentação".
(“Chefe do STF ganha 79% mais que equivalente nos EUA”, Agência Estado, 27.11.2006)
Como isso é possível? Não acabamos de ver, dois parágrafos atrás, que seria absurdo e liminarmente insano cogitar essa possibilidade? Como em um país em que seria demência imaginar que um médico do Estado ganhe algo comparável ao que ganha um médico público nos EUA, admitamos que os poderes se locupletem de tal maneira com o dinheiro do Estado? Não seria o caso, como ensina um ditado antigo hoje em desuso, de colocar dente de ouro em boca de cachorro? Ou melhor, uma dentadura inteira de ouro? Nenhum argumento pode legitimar essa brutal inversão e explicar como uma parcela do Estado merece benefícios tão escandalosos. Bem, dirão os renitentes, trata-se de uma posição de alta hierarquia e, além do mais, a Justiça requer imparcialidade. Ora, bastaria considerar o descalabro que é a administração da justiça no país para concluir que há algo errado. E, quanto à dignidade do posto, é suficiente constatar que a mesma posição nos EUA remunera com muito menos para obter muito mais, como vimos. Mas se, provavelmente, temos no topo do Judiciário os maiores salários do mundo, não era de se esperar aqui a melhor Justiça do mundo?
Assistimos incrédulos, no final de 2006, à escalada voraz dos poderes em busca de aumentos substantivos. Em novembro, vimos o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) criar o jetom dos conselheiros, que aumentaria o salário de seus integrantes de R$ 23.275 para R$ 28.861. A medida foi vetada pelo presidente Lula. Em seguida, no início de dezembro, o CNMP aprovou a equiparação do teto salarial dos integrantes dos Ministérios Públicos estaduais ao valor máximo recebido pelos ministros do STF, que faria seus venc