Carlos A. Lungarzo*
No dia 9 de setembro, o STF começou a julgar o caso Battisti. Nessa sessão foi lido o relatório e se manifestaram com seu voto sete ministros, até que um deles pediu vistas ao processo.
É interessante fazermos um exame acurado dos erros e distorções contidos na peça em que o relator Cezar Peluso se manifesta a favor da extradição. As indicações de forma (p. xx) indicam a página do relatório que estou comentando.
Crime hediondo?
Segundo o relator, o ministro Tarso Genro não poderia afirmar que os delitos de Battisti eram políticos e não comuns, porque isto seria “evidentíssima e censurável invasão de competência da Suprema Corte” (p. 8).
Observação. A Lei 9474, art. 40, permite ao ministro da Justiça decidir em grau de recurso. Pelo art. 41, a decisão do ministro é definitiva. Portanto, o ministro está qualificado para outorgar refúgio em última instância, salvo se o candidato não cumprir algumas das condições necessárias.
Uma delas é a do artigo 3º, §§III e IV: é impedimento ter cometido crime contra a paz, crime de guerra, crime hediondo, terrorismo, tráfico, ou atos contrários a princípios e fins da ONU.
O único ponto sobre o qual poderia existir dúvidas é sobre crime hediondo. Todo o restante é inaplicável a este caso.
Na pág. 52, o relator diz que “hediondo […] é só categoria conceitual do direito brasileiro, destinada a traduzir […] o alto grau de repulsa jurídica […] certos delitos […] capazes de inviabilizar a condição de refúgio”. Então, há um círculo vicioso: não merece refúgio quem cometeu crime hediondo; hediondo é conceito jurídico brasileiro; então, chama-se hediondo ao delito que impede o refúgio.
Ou seja, se um crime X é hediondo, ele impede o refúgio. Mas, o que é “hediondo”? É aquele que impede o refúgio! Então X é hediondo por definição. Se o Estado proíbe um refúgio a um infrator de trânsito, esse será crime hediondo!
Por ser hediondo, não seria político. Mas o relator não define “hediondo”, salvo por meio de uma tautologia.
Para caracterizar como político, Genro destaca no §26 (p. 4 do relatório), que o réu foi condenado por “subversão violenta”, que é um típico delito político em qualquer sistema jurídico ocidental.
Medo de perseguição
Genro afirma (aproximadamente) que o medo de perseguição do réu está baseado em experiências históricas de leis de exceção, e na existência de forças “paralelas”, que fogem do poder oficial. O relator acusa então a Genro de negar que a Itália seja uma democracia (p. 29).
Observação. O MJ não diz isso. Um sistema democrático pode violar os direitos humanos, como acontece em várias democracias latino-americanas.
Legalidade
O relator afirma que supor que o extraditando tenha sido julgado tendenciosamente é uma injúria contra a Justiça italiana (p. 44).
Observação. Típico critério de autoridade. Aliás, há massiva documentação de Anistia Internacional, Report-Italy 1979-1980-1981, indicando arbitrariedades, maus tratos, falta de atenção médica a presos, julgamentos sumários.
ART & RICHARDSON indicam também torturas a prisioneiros: privação de sonho, esmagar genitália, arrancar cabelos, chutes, socos, queimaduras com cigarro, descargas elétricas suaves.
Perseguição atual
Relator (p. 21): o perigo invocado deveria ser atual ou futuro.
Observação. Mesmo que não haja na Itália atualmente leis de exceção, sabe-se que ciganos, albaneses e imigrantes inofensivos, sem antecedentes políticos nem criminais, são espancados pela polícia e pelos agentes de fronteira (AI-World Report, 2009, vide Italy).
Aliás, apesar de ser permanentemente mencionado, o delator Mutti não foi nunca fotografado nos últimos 10 anos, mesmo pelos periódicos que afirmam tê-lo entrevistado. A não aparição pública da única “prova” pode sugerir que foi “silenciado”.
Outrossim, o silêncio na Itália foi aplicado em muitos casos. O jornalista Carmine Peccorelli, após haver denunciado que na morte de Moro estava também a mão do Estado, foi morto a tiros. O poderoso líder Giulio Andreotti foi condenado a 20 anos por esse crime, mas a Suprema Corte o absolveu, sem muita fundamentação.
Piazza Fontana
O relator (p. 45) ridiculariza a tese de que o atentado da Piazza Fontana tenha sido uma provocação paramilitar ou parapolicial, e afirma que o assunto estava ultrapassado na época de Battisti.
Observação. Trata-se de um dos vários atos megaterroristas pelos quais foram responsabilizados fascistas, depois absolvidos pela Justiça sem que os fundamentos da absolvição se tornassem claros. Eis outros:
1970 – Delle Chiaie e Borghese assaltam o Ministério do Interior.
1972 – o neofascista Vinciguerra mata três caribinieri, mas, antes de ser descoberto, a culpa é atribuída à esquerda.
1974 – uma passeata antifascista é atacada a bomba (8 feridos; 102 mutilados).
1974 – trem Roma-Munique (12; 48). Suspeitas sobre o General Miceli, chefe do serviço secreto. Com ajuda americana, é deslocado para fora do país.
1980 (depois do 1º julgamento de Battisti!) – Estação de Bologna Bombardeada (80; 200). MP e polícia culpam esquerda armada. Em seguida, o grupo fascista NAR se atribui, orgulhosamente, o fato. Há outros.
Direito de Defesa
O relatório diz que o réu teve garantido direito de defesa. (p. 60).
Observação. O defensor de ofício e depois o advogado lhe foram atribuídos sem o réu ter conhecimento. Prestigiosos intelectuais franceses (cerca de 400) assinaram um documento que aparece na Internet em vários sites, denunciando que esses advogados foram nomeados sob procuração falsa, e que um deles também era advogado do delator premiado Mutti.
Sentença impugnada
O relator (p. 60) considera evidência de lisura que a Corte de Cassação de Milão desse parcial provimento a uma impugnação sobre a participação de Battisti na morte de Torregiani.
Observação. Esse provimento foi dado, mas não é evidência de lisura. Na sentença objetada se atribuía a Battisti ter matado a Torregiani em Milão e a Sabbadin em Cantana di Santa Maria di Sala, que estão separadas por 320 km, e os crimes diferiam em apenas uma hora e cinqüenta minutos. Ao inventar os fatos, Mutti talvez não reparou nessa contradição, de modo que a correção da sentença normalizava a armação.
Não se julga sentença estrangeira
Este (p. 63 ss) é um velho leit-motiv, segundo o qual a Corte apenas julga aspectos burocráticos, mas não opina sobre a lisura do processo de origem. Não importa quanta jurisprudência haja, este é um claro contra-senso. Não se pode julgar um fato cuja existência não é certa. É como olhar por um telescópio o 12º planeta do sistema solar.
Este desinteresse pela verdade é a parte mais antiética deste processo. Seguindo-se tal critério, acabaria eliminado o direito de asilo, refúgio ou coisa equivalente. O extraditando deveria ser entregue automaticamente, porque a honestidade e soberania do tribunal de origem não podem deixar dúvidas sobre isto: se eles o requerem, é porque têm direito!
O Estatuto do Estrangeiro não dá a Lula a liberdade de aceitar ou negar a extradição
FALSO! Caso essa afirmação seja sincera, é prova de desconhecimento da lógica mais trivial.
A lei estabelece uma condição necessária: se o STF proíbe a extradição, então O presidente não pode extraditar. Aí, é verdade, não tem poder discricionário. Mas, se o STF autoriza, O PRESIDENTE PODE EXTRADITAR OU NÃO.
Por último: o relatório de Peluso contém pelo menos o triplo das falácias aqui denunciadas, mas seria exaustivo apresentá-las todas num artigo, cuja característica básica é ser essencializado e objetivo. O leitor paciente as encontrará, sem dificuldade, na teratológica peça do relator: http://media.folha.uol.com.br/brasil/2009/09/09/peluso_battisti.pdf.
* Carlos Alberto Lungarzo é professor aposentado da Unicamp e membro da Anistia Internacional dos Estados Unidos (AIUSA).
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