Marcelo Mirisola*
Acordo entre seis horas e seis e meia da manhã. Quase todo dia. Às vezes, quando vou dormir muito tarde, tipo dez e meia da noite, levanto às sete da matina. Isso quer dizer que – no máximo – às sete e meia estou na padaria, comendo meu pão na chapa. Ontem, às seis horas, estávamos lá na padaria: eu, meu pão na chapa e mais um pingado.
Há três semanas escrevi uma crônica sobre os escritores fofos. Um deles, do outro lado do balcão e completamente bêbado, me reconheceu. Deu a volta, sentou-se ao meu lado e pediu uma dose de Dreher. Em seguida me abordou com uma cara de “On The Road”via Galeria Pajé:
“Aí, cuzão! A sabedoria está no excesso,William Blake”.
“Ah, é? E a burrice também” – retruquei.
O Fofo cuspiu algumas palavras “fuck you mother” em inglês, acho que era inglês, entornou o conhaque e, antes de virar purpurina com o resto da noite, usou os dedos para reforçar o “fuck you…”. Claro, ele tinha de usar os dedos. Tão previsível quanto o rímel que escorria de suas pálpebras, e borrava a maquiagem. Também usava coturnos e rebolava.
Terminei meu pão na chapa, e pedi outro pingado. Pensei comigo mesmo: “Sabedoria no excesso de quê? De cana? Será que foi isso o que Blake quis dizer? Ou é interpretação do Fofo?”.
Aí resolvi me exceder. E pus os miolos pra funcionar. Na maior parte das vezes, me excedo matutando bobagens. Sabedoria que é bom mesmo, só quando vou dormir às nove da noite, e acordo às seis da manhã. A primeira coisa que me veio à cabeça foram as mocinhas do telemarketing. Em vez de reagir à babaquice circundante, os intelectuais brasileiros resolveram implicar com os gerúndios das mocinhas. Pobres moças. Arnaldo Jabor foi implacável com elas na última terça-feira. Joaquim Ferreira dos Santos, do Globo, também não perde uma oportunidade de massacrá-las. Eu mesmo já entrei nessa onda, e agora me penitencio. Já imaginaram como a vida dessas moças seria incompatível com elas mesmas sem os gerúndios? A importância do gerúndio na vida de uma mocinha do telemarketing é a mesma de um Glauber Rocha na vida de um Jabor. Sejamos generosos. Por que não nos concentrar em algo mais importante?
Por exemplo: catalogar os escritores fofos. Esse sujeito que me abordou na padaria é o típico fofo-bitinique. Voltando à cena da padaria: quantas estradas levam à sabedoria? Eis a frase correta de Blake: “The road of excess leads to the palace of wisdom”. Ou, segundo a tradução de Paulo Vizioli: “A estrada do excesso leva ao palácio da sabedoria”.
Faz toda a diferença. Blake exclui o óbvio. Ou seja, a cachaça pela cachaça. Existe um pressuposto de graduação, pit stops e caminho a seguir e palácios (que não são botecos, nem padarias) a serem desfrutados em conseqüência de uma travessia. Blake fala em disciplina e compensação.
Não obstante, pretendo seguir os rastros (e excessos) do Fofo-bitinique. Para tanto, vale repetir a pergunta que me fiz depois de ele ter me fuzilado com sua pusilânime fofura: “Excesso de quê?”
Vamos lá. Excesso de luz? Talvez, li em algum lugar que, antes de morrer, Goethe pediu mais luz. O cardápio dos excessos é variado. Temos excesso de obstinação, excesso de liberdade, excesso de coragem, e mais um montão de excessos, incluindo – por que não? – excesso de birita e de drogas leves e pesadas – dependendo de quem as usa e a padaria que freqüenta… Ah, meu Deus, eu poderia enumerar milhões de excessos e incluir o bom-senso (e a falta de): que também devem levar a sabedoria. Tem neguinho que chega ao nirvana renegando todos os excessos, inclusive a sabedoria (que por si só é um excesso…). Portanto, a questão é o vice-versa.
Sabedoria é o tipo da coisa que não dá camisa a ninguém, e creio que deva ser usada com muito cuidado, e a conta-gotas. Na aplicação é o oposto de uma maldade, com a diferença de que essa última é passageira e pode eventualmente – segundo Nicola Machiavelli – levar o titular a ter sucesso em suas mumunhas e a um bom governo. Só isso. Desconfio que a maldade é um pretexto para o sábio. Uma ferramenta. Para mim – que resolvi me exceder em conjeturas – não passa de um exemplo. Um ancinho que serve para aparar as arestas, para tripudiar dos fofos, coisa pequena. A bondade idem, e os pardais que, agora, piam na Pça. Dom José Gaspar ibidem.
Sabedoria não é um meio, e não é um fim. Se está no excesso, pode estar – inclusive – por excesso de cuidado, e excesso de zelo. Daí que o excesso também é coisa pequena. Simples, né? Não precisei ser nenhum sabichão para chegar a esse termo. Usei apenas uma lógica muito da safada. Tem neguinho por aí que fica cagando lógica na cabeça dos outros. Tolice. Sábio mesmo – e pragmático – foi Campos de Carvalho, que logo no começo do seu “A lua vem da Ásia”* mata o professor de lógica.
Quem tem ou adquiriu ou fareja sabedoria, sabe que é artigo raro e de difícil manipulação, quase inútil e escorregadio, e sobretudo não é acessível a qualquer pangaré. Muito menos a fofos metidos a bitiniques.
O problema é que a exceção nem sempre confirma a regra. Quem me dizia o contrário, que “a exceção confirmava a regra” era o Chiquinho, meu professor de matemática. Bati muita cabeça por aí para provar que ele estava errado. Devia tê-lo assassinado, mas entendi que era mais razoável (até porque sempre o respeitei) me vingar. Comecei essa vingança com treze anos. E notem que naquela época acreditava que o Caetano Veloso era um gênio. De modo que passei a vida inteira contrariando a regra e a exceção. Faço a minha parte. E o professor Chiquinho, creio, deve ter permanecido irredutível. Ele era um babaca mas tinha lá sua “lógica”. Quase sempre ele esteve certo. Às vezes, eu confirmo minha particular exceção: e me vingo dele e de suas regras. Jogo limpo.
O que não dá é para ignorar a lição do Chiquinho, e ajustar o erro à nossa conveniência. Aí é cachorrice, e falta de caráter. Foi o que eu quis dizer ao Fofo. Ele preferiu o conhaque e me ignorou. Ignorou, uma vírgula. Não entendeu nada porque, além de Fofo, estava bêbado e devia ser uma espécie de asno que latia.
Taí um caso exemplar: o excesso de fofura levou à asnice: bem como o excesso de água mineral leva ao afogamento. Excesso de álcool incha os pés e leva aos alcoólicos anônimos, mas também pode ajudá-lo a comer aquela mulata deliciosa, excesso de saúde leva ao cemitério, excesso de drogas leva à cadeia e pode levá-lo a comer trufas no Fasano (depende quem são seus amigos), excesso de tatuagens e piercings levam somente ao ridículo, excesso de altruísmo leva a pulga atrás da orelha, excesso de loucura ao manicômio, excesso de luz leva a cegueira se você não for um Goethe, excesso de escuridão (se você for um Borges) pode levá-lo a clarividência, excesso de obviedade leva ao ululante, e tem gente que se excede tanto na mentira que o excesso leva a verdade, e se essa verdade for repetida a exaustão pode levá-lo ao nazismo, e provavelmente o levará ao Washington Olivetto (que nunca se excede, mas está sempre lá pra tirar as casquinhas do excesso alheio); de modo que o excesso pode levá-lo a nem parecer aquilo que de fato você é, e assim, o excesso pode levar um banqueiro a virar cineasta e um débil mental a invadir o Iraque, tem gente que se excede tanto que acaba passando dos limites e, por fim, têm uns pobres coitados que freqüentam a mesma padaria que eu e que, por mais que se excedam, jamais conseguirão ser diferentes daquilo que são: bestas irremediáveis e vaidosas e pretensiosas que jamais vão entender o que William Blake quis dizer, e o excesso os levará no máximo a fazer mais uma tatuagem, e a ululante fofura, e – claro – os levará a encher o meu saco na padaria, às sete horas da manhã.
Também pode levá-los a Mercearia São Pedro, mas aí o problema é do Marquinhos. Que inclui o excesso no preço da birita, e ganha a vida com isso. Aliás, quero dizer que não sou inimigo da Mercearia São Pedro. Foi o Reinaldão Moraes quem me levou lá pela primeira vez. Em 1998. Naquela época, não existia sala Vip (para os viados importantes e as assessoras de imprensa fazerem seus conchavos e negociatas) e não tinha fofo encostado no balcão fazendo cara de mau, e não havia lançamento de livro genial toda semana. Havia lá uma meia dúzia de livros sim, que eram os preferidos do Marquinhos. Nada demais. Era apenas um boteco despretensioso que, além do sanduíche de carne assada e da Xingu que o Reinaldão até hoje tanto preza, também vendia K-boa, e produtos de limpeza em geral.
Eu lembro, no lugar de toneladas de livros fofos existia sabão
· Os Parlapatões estão debulhando “A vaca de nariz sutil”. Henrique Stroeter, meu querido amigo Napão, encarna um Campos de Carvalho febril e convincentemente desapaixonado (humanos são os outros). Todas as sextas e sábados às 21 horas, e domingos, às 20 horas. O endereço é Pça.Roosevelt, 158, Espaço dos Parlapatões.
· Além do Sebo do Bactéria, o “Proibidão” também está a venda nas lojas da Fnac. Abraço, Augusto.
· Bom saber que os primeiros livros da série “Amores Expressos” já foram entregues e encaminhados a publicação. Melhor mesmo é saber que, graças ao meu trombone (sim, porque fui eu quem levantei a lebre), não houve – através da Lei Rouanet – captação de dinheiro público. Alguém pagou do próprio bolso. O Estado economizou cerca de R$ 1,2 milhão. O Gil (ou seria o Guido Mantega?) devia me dar uma medalha. Quero crer que esse dinheiro não foi desperdiçado em cartões corporativos. Agora, é a prova dos nove. Resta conferir a qualidade dos livros.
* Marcelo Mirisola, 42, é paulistano, autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô, O azul do filho morto (os três pela Editora 34), Joana a contragosto (Record), entre outros. Publica em revistas, sites e jornais de todo país.
Deixe um comentário