Marcelo Mirisola*
Na crônica da semana retrasada, eu falava da minha chegada a São Francisco Xavier, e dos meus primeiros dias no sítio do Napão. Tive de interromper meu auto-exílio por conta de umas questões baianas, que já deram muito pano para manga… O melhor é retomar aqueles dias, a bem da natureza e dos pássaros que continuam a gorjear (em qualquer circunstância) – e apesar de tudo.
Pois bem, no terceiro ou quarto dia, me dei conta de que algumas coisas muito preciosas para mim só me faziam falta mesmo na lembrança. Tentar entender essa “falta reluzente” para o consumo próprio já é algo meio complicado. Para o leitor que nada tem a ver com isso, uma evidente aporrinhação.
Era como se eu tivesse algo que substituísse Billie Holiday e o inverno triste e chuvoso que passei em Porto Belo, a quinze metros da arrebentação. Sim, dava até para medir. Com esse “algo” eu não estaria apenas e tão somente trocando o gris e os desvãos pela paisagem, mas também conseguiria sublimar – entre tantas pequenas iluminações – os churros na praia do Gonzaga, e a felicidade da primeira ponta de cigarro fumada aos dez anos de idade. Investido de um poder real. Por exemplo, se eu quisesse, atravessaria a neblina que cobre a Serra da Mantiqueira nesse instante – apenas invocando uma lembrança. Falo de ocupação mesmo. Uma coisa no lugar da outra. Ora, que diabos de poder seria esse?
Solidão. Com o que, afinal, eu poderia contar senão com minha solidão? Isso mesmo, a solidão. É como se a solidão pudesse suprimir o melhor de mim. Inclusive minhas melhores lembranças. “Isso é muito esquisito, mas pode ser um começo” – foi o que pensei. E um começo sem “o melhor de mim” podia ser um grande começo.
Mais uma vez Cris McCandless sorria atrás daquela foto.
O sítio do Napão é quase um spa. Conforto e privacidade com duas suítes, sauna finlandesa, lareira, TV a cabo, DVD e cachoeira. Ele aluga o sítio! Basta dizer que não consegui, e nem fiz muita questão de ligar a TV a cabo, nem a lareira: para tanto eu teria de apertar uns três ou quatro botões, e atear fogo em nós de pinho muito complicados. Tenho preguiça da tecnologia, e também me descobri um péssimo homem das cavernas. Assim desisti da cachoeira e da piscina. A gripe também atrapalhou. Portanto, sobravam a sauna finlandesa, e minhas melhores lembranças (ocupadas pela solidão, como eu já disse).
À sauna, portanto.
Antes de tudo, tenho de dizer que é finlandesa. Vou chamar de a Sauna Finlandesa do Napão. A antecâmara tem um janelão de vidro que permite uma linda vista da Mantiqueira. E mapas-múndi decoram o local, digamos que facilitam as condições de vôo.
A verdade é que fiquei nostálgico. Todo esse cenário, mais as espreguiçadeiras e as toalhas coloridas e os roupões felpudos do Napão, fizeram com que eu voltasse aos tempos de minha rica e claustrofóbica infância. Os adultos jogavam pôquer, bebericavam o sagrado uisquinho, fumavam com elegância e depois da sauna iam tomar uma ducha. Vidão. Hipócritas, porém encantadores. Em trinta e dois anos, o mundo e o mapa-múndi mudaram bastante. Mas as traições e as mentiras continuam lá desde sempre, como se fossem pontos cardeais, independente do degelo das calotas polares, e afinadas com os assassinatos e invasões de Jorginho Bush.
Eu, criança assustada, achava que churrasqueira, neblina cobrindo a Pedra do Baú, chocolate quente com rum, lareira e baralho, e mapas-múndi, sobretudo, eram “coisas de adultos”. Isto é, convivia com esses pingentes, mas não tinha acesso a neblina. Era transpassado: uma vez que eu era apenas um pirralho, e os “instrumentos” definitivamente me faltavam. Sobrava uma tesão insuspeita. Também tinha a convicção de que jamais conseguiria ser um adulto, era demais para mim. Isso dava tesão. Tesão que se originava na impossibilidade de pertencer, e a essa condição de “fantasma” e/ou desaparecimento efetivo, naturalmente sobrevinha uma culpa sofisticada – que não só redobrava meu sentimento erótico, mas sobretudo me apartava do dia a dia. Uma vez que eu – ainda que a contragosto – participava daquilo tudo… vejam só: como criança!
Peter Pan e o Capitão Gancho eram farinha do mesmo saco, dois sacanas, não só porque me enganavam (aliás, todos me enganavam…) mas porque estavam aquém das minhas expectativas claustrofóbicas; desde muito cedo eu fui um fantasma aplicado: queria estar no meio da coxas de Maria Stella Esplendore, não obstante cavava buracos. Era minha atividade predileta, aliás: cavar buracos na areia do playground: devidamente vigiado por Gessy, a babá que me assistia. Ia completar dez anos – fico até constrangido em dizer – e era vigiado por Gessy, minha babá!
Quando saía dos buracos ia direto para o lombo da Gessy. Assim fiz minhas primeiras incursões no sadismo alheio. Vou deixar isso bem claro, e repito: sadismo alheio. Uma vez que eu apenas montava, mordia e açoitava Gessy a pedidos, os adultos é que se divertiam às minhas custas, eles eram os autores da minha distração. Dos buracos eles não sabiam nada. Eu não passava de um Brás Cubas capenga, e sem autonomia para o desejo. Apenas mordia, açoitava, batia. E Gessy, bom dizer, consentia e era remunerada para tanto. E ela gostava! Empinava o flanco e relinchava, pedia mais: “Bate, patrãozinho! Bate no cavalinho!”.
Evidente, abusaram de mim. E daí? Não tenho absolutamente nada do que me queixar. Ao contrário, só tenho a agradecer. Se remoesse o abuso, estaria internado num hospício, ou teria virado um clérigo aeróbico… ou coisa pior. Talvez um nadador.
Ora, sou um “écrivain!”, assim que preencho as fichas de hotel. O que mais eu poderia querer? Aqui, tenho liberdade para tripudiar de mim mesmo, virar o mundo do avesso, mentir e dissimular e até ir em busca da verdade (como se fosse um tempo perdido…), aqui, não preciso acreditar em mim, e – às vezes – amparado pela inverossimilhança, dispenso redes de proteção, posso desdenhar dos céus e sobrevoar abismos infernais, somente aqui, como escritor, sim, porque adquiri essa condição – não é pra qualquer pangaré, vou logo avisando – tenho autonomia para desejar um bom dia para a morte e para ter ereções ao rezar o Pai Nosso toda santa manhã, sobretudo naquela parte que diz: “Perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”. Enfim, tirando a taxa de juros e as investidas líricas dos Irmãos Salles, não tenho absolutamente nada do que reclamar: “Bate patrãozinho! Bate no cavalinho!”. Ganho pouco, mas me divirto.
Onde estava mesmo? Ah, na antecâmara da Sauna do Napão, tinindo de lucidez. Os sustos e os sobressaltos da minha infância cobravam a parte que lhes cabia. Era hora de acertar as contas com meu trenzinho fantasma particular: tive a convicção de que a Mulher Gorila ia aparecer na próxima curva, esse era o truque, ela não ia escapar da jaula, mesmo assim eu morria de pavor. Era o vaivém serpentário do porão, e o ranger dos carrinhos nos trilhos exatamente na hora em que os mortos-vivos saíam de suas sepulturas (aos gemidos!), desde sempre os malditos íncubos a me atazanar, a cada monstro deixado para trás um tranco, a certeza de que eles voltariam na próxima curva. E eles sempre voltaram. O boneco-vampiro virava o rosto na minha direção, e logo se escondia, filho da puta. De ponta-cabeça os cabelos de piaçava da mulher-caveira raspavam na testa, era o sexo desfrutado em 1976, isso era legal.
Será que a Mulher-Caveira casou, teve filhos? Desde aquela época sempre cultivei uma ternura especial pela Mulher-Caveira e por Gessy, desejo tudo de bom para as duas.
Todavia o Menino Frankenstein anunciava a curva fatal logo em seguida, nada de trégua. Nós, os passageiros da vida, seríamos jogados contra a parede, nesse instante, antes da colisão, as almas penadas insurgiam-se às gargalhas nas profundezas da breguice que era aquilo tudo …
O problema é que sempre tive a alma livre (embora travada) e os íncubos, e as demais almas agônicas nunca me perdoaram por isso, elas jamais suportaram minha liberdade, nem elas nem meu irmão; no mesmo carrinho, ele se conluiava às almas quiméricas e anunciava a colisão que, no entanto, jamais aconteceria, desse modo fazia, fez – e faz e fará para sempre – com que meus pesadelos fossem muito piores, porque jamais abri os olhos nos trens fantasmas.
As almas suplicantes me sacaneavam, sabiam do meu pavor, e eu entrava nos carrinhos para desafiá-las, e elas se divertiam com a minha impotência, sabiam da minha derrota de antemão, dos meus olhos fechados com força. Nunca abria os olhos, nem quando cavalgava Gessy.
Até que abri, depois de trinta e dois anos. Eu estava lá na Sauna do Napão, com os meus sustos e sobressaltos devidamente administrados. O mapa-múndi decorava o ambiente. Pela primeira vez, eu estava, ou melhor, fazia parte de um trem fantasma verdadeiro acompanhado de fantasmas verdadeiros (agora meus pares)… e do lado de fora do janelão, no pós-sauna “is anybody out there?” havia sim, a solidão, que abarcava o melhor de mim, e havia a neblina que cobria a Serra da Mantiqueira junto às minhas piores lembranças: como se durante todos esses anos acobertasse um crime imprescritível. A sensação era de paz.
*Marcelo Mirisola, 41, é paulistano, autor de O herói devolvido, Bangalô, O azul do filho morto (os três pela Editora 34), Joana a contragosto (Record), entre outros. Publica em revistas, sites e jornais de todo país. No prelo, Proibidão (Editora Demônio Negro).