Cláudio Versiani, de Nova York*
George Bush mais uma vez surpreendeu. No seu discurso à nação, assumiu a pose de conciliador perante o Congresso e o povo norte-americano. Foi uma versão Bush paz e amor, ou um disfarce que, para variar, enganou a nação. O inacreditável é que o discurso agradou ao país. Diga-se de passagem que, a cada ano, ele vem perdendo apoio, mas as pesquisas revelaram que 75% dos americanos gostaram do que ouviram e viram. Foi um discurso de 53 minutos e 5.327 palavras em que o presidente foi aplaudido 58 vezes e citou os atentados de 11 de setembro em 12 momentos e o Iraque em outros 15. Americano adora números.
Bush falou de economia, política, saúde e não se esqueceu da Al Qaeda, de Bin Laden, de Saddam Hussein e do Irã. O presidente tentou vender a mesma mercadoria de sempre. O peixe que Bush vende não cheira bem, está velho e estragado.
Se, em 2005, logo depois da reeleição, o que se viu no plenário do Congresso foi um presidente arrogante, com capital político para dar e vender; em 2006, Bush chegou humilde. Pediu ajuda e conselho aos congressistas. Ou, como disse um senador, ele veio aqui pedir capital político emprestado. O presidente está na bancarrota política.
Ele pregou a união de republicanos e democratas, pelo bem do país. Falou dos inimigos da liberdade. Disse que o isolacionismo é ruim, e que os EUA continuarão a liderar a economia mundial e assegurar a paz. O destino da América é a liderança, garantiu o presidente George Bush.
“Nós nunca nos renderemos ao mal”, discursou – frase para inglês ver. “Nós somos a nação que salvou a liberdade na Europa, ajudamos a construir a democracia e vencemos o império do mal. Mais uma vez, nós aceitamos o chamado da história para conduzir esse mundo em direção à paz.”
Bush só pode estar vivendo no mundo da lua ao acreditar que o Iraque representa o caminho da paz. É um pouco demais, não? Ou então é um caso esquizofrênico de dupla, tripla ou múltipla personalidade.
Em 1945, existiam 24 democracias solitárias no mundo, segundo o presidente. Hoje são 122. Será que ele incluiu o Iraque e o Afeganistão nessa conta?
“Nós amamos a nossa liberdade e vamos lutar para mantê-la”, disse Bush. Deve ser por isso que o orçamento do Pentágono anda na estratosférica casa dos US$ 480 bilhões.
Depois de mais de 2.200 soldados americanos mortos, 15.000 feridos e uma grande quantidade de combatentes com problemas mentais, falar que está ganhando a guerra do Iraque é não reconhecer a realidade. “Nós estamos nessa luta para ganhar e estamos ganhando”, disse Bush. Você acredita que ele acredita nisso? Na guerra globalizada, o Brasil já tem o seu primeiro soldado morto. Luis Felipe Barbosa, um garoto brasileiro de 21 anos que lutava pelo exército americano, morreu no fim de Janeiro no Iraque. A imprensa brasileira pouco se importou com o assunto.
Os iraquianos que não sabem quantos compatriotas morreram nessa estúpida guerra vivem em condições muito piores do que na época do ditador Saddam Hussein. Três anos e US$ 16 bilhões depois, falta energia elétrica, a gasolina é racionada e custa muito caro, a produção de petróleo caiu. Não há emprego e muito menos segurança, sobram bombas de todos os lados. Só não vê quem não quer: o país está em guerra civil. Como alguns comandantes militares americanos já admitiram, é uma guerra impossível de ser ganha. Bush arrumou seu Vietnã particular.
O presidente pediu ao Congresso mais US$ 120 milhões para sustentar a interminável guerra do Afeganistão e a do Iraque, que segue na mesma trilha. A indústria bélica agradece. As companhias de petróleo, que têm faturado como nunca, também não têm do que reclamar. As guerras terão consumido ao final do ano de 2006 quase meio trilhão de dólares, a mesma quantia do déficit americano.
O presidente Bush falou também da corrupção no Iraque, mas se esqueceu da corrupção “made in USA”. “Jack Abramoff? Nem sei quem é”, diz Bush. A empresa da qual Dick Cheney foi o chefão antes de assumir a vice-presidência, a Halliburton, está sendo investigada por suspeita de fraude e superfaturamento nos acordos que tem no Iraque. São contratos (vários sem licitação) de alguns bilhões de dólares para reconstruir a infra-estrutura do país.
O presidente, na sua ladainha de quase uma hora, mencionou de passagem o furacão Katrina – nem é bom lembrar – e só tocou no assunto da previdência social – também deixa pra lá. O negócio é vender o medo. Ameaçou o Irã. O mundo não vai permitir que um país muçulmano radical tenha uma bomba atômica. Esqueceu-se, mais uma vez, de que os EUA estão desenvolvendo uma mega bomba de hidrogênio.
Bush tentou justificar a espionagem, sem autorização judicial, que o governo vem fazendo nos assuntos privados (e-mails e conversas telefônicas) dos cidadãos americanos. Uma comissão do Senado está investigando o caso. Já a Casa Branca quer saber quem vazou o segredo para o New York Times. Alguns senadores republicanos estão se rebelando e pedindo que a investigação vá para o plenário do Senado.
O presidente prometeu investir na ciência, na saúde e na educação, mas o orçamento de 2006 traz cortes nessas áreas. O país tem hoje 45 milhões de americanos sem seguro-saúde, 5 milhões a mais desde que Bush assumiu a presidência. O senador republicano Arlen Specter disse que os cortes na saúde e educação são escandalosos. O mesmo senador acredita que o programa de espionagem é ilegal. Tem republicano achando que a mala de Bush é muito pesada para ser carregada, especialmente num ano de eleição.
A comunidade científica tem reclamado muito da interferência do governo federal. Até casos de censura em relatórios governamentais sobre o aquecimento global apareceram na imprensa. Sem contar as questões religiosas, o aborto, pesquisas científicas com embriões e a tentativa de substituir a teoria da evolução de Darwin pela tese de que Deus é o responsável por tudo. A direita cristã, aliada de primeira hora do governo Bush, acredita que pode direcionar o pensamento científico. Ou, como disse Bush no seu discurso, “a vida é uma dádiva do criador”. Bush conversa diretamente com Deus, e não se fala mais nisso.
A frase que fez sucesso e gerou manchetes foi: “América é viciada em petróleo”. E, continuando o discurso do faz-de-conta, George Bush lançou um plano para reduzir a dependência americana ao óleo pela metade em 2025. Ninguém acreditou. Foi só mais uma frase de efeito.
O discurso do presidente, segundo a revista Time, teve 30 rascunhos, tudo certo para ganhar as páginas e telas. Porém, a Casa Branca não contava ter que dividir o espaço na mídia no dia seguinte com a prisão de Cindy Sheehan, mãe de um soldado morto na guerra do Iraque. Ela foi retirada da galeria do Congresso porque estava usando uma camiseta com o número 2.245 (numa referência aos soldados americanos mortos no Iraque) e com a pergunta: “quantos mais?“. Liberdade de expressão só para uns.
2006 será um ano de eleições para a renovação de uma parte da Câmara dos Deputados e para o Senado. Bush viveu em 2005 o seu pior ano. A Casa Branca aposta que, pior do que está, não pode ficar, ou seja, a perspectiva é boa ou pelo menos não é tão ruim. Quase 70% dos americanos acreditam que o país está indo na direção errada, incluindo aí a economia e a guerra do Iraque. É impossível saber qual cara o presidente George Bush usará neste ano de 2006. De minha parte, prefiro a cara dos Bushs que vi na Times Square no dia do discurso do presidente. Faz mais sentido.
Contrariando a Casa Branca, 2006 parece que será pior ainda do que 2005. Na sexta-feira 10 de fevereiro, quatro notícias ganharam as manchetes. O ex-chefe de gabinete de Dick Cheney, Lewis Libby, revelou que foram seus superiores que pediram para ele lançar uma campanha de descrédito do embaixador Joseph Wilson, aquele que foi à África checar se Saddam tinha comprado urânio. O embaixador escreveu um artigo no New York Times contando como a administração Bush forçou a barra nessa história. E-mails revelaram que a Casa Branca soube quase imediatamente do rompimento dos diques de New Orleans. O governo federal demorou ainda uns três dias para se mexer, vergonha.
Um ex-alto funcionário da CIA revelou que a Casa Branca politizou os relatórios sobre as armas de destruição em massa do Iraque e ainda insistiu para a CIA encontrar conexões entre os atentados de 11 de setembro e Saddam Hussein. A CIA não descobriu nada, mas Bush usou os argumentos em seu discurso de 2002 como justificativa para ir à guerra.
E, finalmente, apareceu a primeira foto de Bush e Abramoff, o lobista que já se declarou culpado de fraude, corrupção e outros crimes. Para piorar um pouco mais, a investigação descobriu e-mails de Abramoff comentando que ele conversou com o presidente várias vezes, cara a cara.
Como se vê, 2006 promete.