Fátima Cleide*
O 31 de outubro entrou para a agenda de festas anuais no Brasil – ao menos nas grandes e médias cidades. É o “Dia das Bruxas”, o Haloween importado na América do Norte.
Confesso que o “Dia das Bruxas”, tal como se instala entre nós, incomoda um pouco pra além do meu sentimento nativista. Sobretudo quando vejo, refletidas nas vitrines dos centros comerciais, as pessoas tomadas por aquele novo apelo ao consumo rápido de mais um produto cultural importado, recém-chegado, requentado com sotaque nova-iorquino. Enquanto isso, não percebemos sacis, e mapinguaris somem do mapa, junto com rios e florestas, exauridos pela indústria transnacional.
Mas o Haloween me incomoda também na medida que o mito da bruxa substitui a realidade da mulher que se fantasia nele.
Bruxa, não por acaso, ao longo dos tempos refere-se em geral à entidade feminina, maligna, execrável, que só se anula com a morte – desde que Eva conduziu Adão ao pecado original – e, com isso, a dor e a morte aos seres humanos. No entanto, como fast-food cultural, como estímulo ao consumo rápido e generalizado, são bem recebidas no mundo moderno.
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Portanto, a propósito do “Dia das Bruxas”, quero tratar das bruxas da realidade, aquelas apontadas como tal no meio social, pois essa imagem me parece bem adequada ao contexto da intensa polêmica sobre o Projeto de Lei da Câmara 122 de 2006, que busca coibir a discriminação a homossexuais, tipificando-a como crime.
Porque, na condição de relatora desse projeto na Comissão de Direitos Humanos do Senado, com parecer favorável à sua aprovação, há pessoas que se referem a mim como uma espécie de bruxa, que trabalha diabolicamente para instituir a orgia geral no Brasil, cúmplice de um plano internacional para implantar a ditadura gay no mundo. Tenho recebido, até de colegas de Parlamento, farto material publicado com advertências nesse sentido.
No entanto, o PLC 122 de 2006 apenas estende aos homossexuais a proteção de leis que já vigoram há anos, no combate ao racismo e ao preconceito contra etnias, povos e religiosos, além dos estatutos que definem proteção especial a idosos, crianças e adolescentes, mulheres e deficientes físicos.
O Congresso Nacional e a sociedade já reconheceram a necessidade de regras específicas de convivência para assegurar plena cidadania a esses segmentos da população. O PLC 122 de 2006, portanto, tenciona tão-somente estender esse reconhecimento e conseqüente proteção a mais um grupo social notoriamente vitimado por cruel e múltipla discriminação: os homossexuais e transexuais.
No entanto, a dificuldade extraordinária neste caso deve-se às pessoas que não os reconhecem como sujeitos de direito e até afirmam que a sociedade passaria melhor sem eles – ou, ao menos, sem sua sinceridade; que já há suficiente liberdade e realização plena na heterossexualidade.
Por muito tempo acreditou-se também que o mundo não precisava de mulheres na política, na economia, na produção de conhecimento, transitando para além do trajeto entre a cama, o tanque e o fogão.
O apóstolo Paulo, em Coríntios, diz que a mulher foi criada apenas para servir ao homem; e, em Efésios, que devem se submeter em tudo a seus maridos.
O humanista gaúcho Marcos Rolim, em pronunciamento memorável à Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, ressalta, com muita propriedade, que essas determinações são abundantes na literatura sacra e fundamentam “um dos fenômenos mais terríveis da cristandade: o período de caça às bruxas”.
O aspecto da mulher é belo, reconhecia-se, mas sua companhia podia ser mortal. Sua sexualidade (…) passava a ser doravante associada a atributos infernais. (…) Desde sempre imperfeita e perigosa, a mulher possuía menos fé, por natureza. Aliás, assinala-se, deriva desta convicção o vocábulo “feminina” que vem de “fé” “mina”; ou, simplesmente, “menos fé”. Calcula-se que no espaço de três séculos – de 1450 a 1750 – pelo menos 60 mil mulheres foram queimadas como feiticeiras. Para variar, tais táticas tinham sustentação bíblica: em João, capítulo 15, versículo 6, pode-se ler: “Se alguém não permanecer em mim, será lançado fora à semelhança do ramo e secará: e o apanham, lançam no fogo e queimam”. E, igualmente em Êxodo, 22:18, onde assinalou: “A feiticeira, não deixarás viver”.
Mas quem eram essas bruxas que mandamos queimar em praças européias, para o riso e o temor das concorridas audiências? Mulheres comuns que não se adaptavam aos critérios masculinos de piedade; parteiras e curandeiras que detinham um saber não oficial; velhas de comportamento exótico, esposas infiéis, adolescentes consideradas estranhas, qualquer uma que, por qualquer motivo, ameaçasse a vigência de um padrão de conduta.
Ocorre que muitas outras bruxas se seguiram. A história está povoada delas. Bruxas como Olympe de Gouges, que, em plena Revolução Francesa, publicou, para o escárnio geral, a “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã”. (…) E houve bruxas inglesas, como Flora Tristan, que, testemunha do desenvolvimento industrial do século XVIII, ergueu sua voz para denunciar o regime de servidão ao qual estava submetida a classe operária e, particularmente, as mulheres operárias. (…) Flora morreu esgotada aos 41 anos de idade, dizendo: “O que significa amar? Amar é escolher. Para amar é preciso ser livre”.
Já na outra vertente do século, outra bruxa, Louise Michel lhe responde, afirmando: “Escravo é o proletário, e escravo mais que todos é a mulher do proletário”. (…) Ao exemplo de tantas outras feiticeiras, Rosa ( de Luxemburgo) teve seu destino esfacelado por mãos assassinas e masculinas, como tiveram na América Latina e no Brasil tantas outras bruxas, como Olga Benário Prestes, entregue à Gestapo pelo Senhor Getúlio Vargas; ou como as centenas de companheiras que conheceram a fúria e a humilhação da tortura nos porões imundos da ditadura militar.
Sr. Presidente, acredito que as feministas sejam, por excelência, as bruxas da modernidade. É verdade que já não lhes preparamos fogueiras, mas é igualmente certo que nossa sociedade encontra-se verdadeiramente ardendo em preconceitos.
E, quando falamos em gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, de quem estamos falando? De pessoas de bem, que tocam sua vida com dignidade, apesar do preconceito – desde a conduta corriqueira dos indivíduos até a omissão institucional de direitos civis; pessoas comuns, que pagam suas contas e cumprem compromissos com responsabilidade; que precisam trabalhar para viver, e se desenvolver material e espiritualmente, que amam, se apaixonam, choram e louvam o amor… como todo ser humano!
Pessoas assim, aos milhares, que diferem da maioria apenas quanto à sua libido – que é orientada para relações sexo-afetivas com pessoas do mesmo sexo ou de ambos os sexos. Há, inclusive, os que nascem com características físicas especiais mais explícitas – como, por exemplo, alguém dotado de mamas femininas, útero, ovários e um pênis no lugar do clitóris. Assim como outros nascem com outros órgãos, sistemas ou membros alterados em relação ao padrão anatômico mais comum. Os superdotados e os débeis, os muitos tipos do que se chama deficiência física. Todas essas pessoas vivem sob o estigma da “aberração”, da “anormalidade”.
Mas, será que, na civilização do terceiro milênio depois de Cristo, alguém ousaria usar de função pública para defender que essas “aberrações” são expressão de seres abomináveis, menos humanos e naturais que os demais? Que sua deformação nos agride e que cuidem de se reformar, de se arrepender de terem nascido assim; de adotar o formato padrão, ou desapareçam?
Não. No Brasil de hoje tal comportamento é considerado crime, quando assim se refere a negros, índios, religiosos de todos os credos, qualquer procedência nacional, deficientes físicos, idosos e crianças. Falta incluir os homossexuais.
No entanto, nem sempre foi assim. Houve época em que o Estado entendia que negros e índios não eram cidadãos; que não tinham alma; que eram seres criados junto com animais para servir ao homem branco, macho e rico, até a exaustão, e serem eliminados e substituídos por novos indivíduos quando não servissem mais.
Do mesmo modo, houve tempo em que se perseguiam, torturavam, aprisionavam e matavam cristãos. Como também houve época em que reinados e impérios cristãos perseguiram ateus, curandeiros, cientistas e muitas mulheres.
Assim, estou segura de que a corajosa teimosia que atravessa a história da humanidade, aprimorando a convivência civilizada entre seres humanos e destes com o mundo criado, também nos animará seguir na construção de regras de convivência mais fraterna, harmoniosa, receptiva e tolerante.
Afinal, somos bilhões de seres humanos, feitos um a um, de sorte que não há uma só pessoa igual à outra. É infinita a variação possível. Nessa realidade, quem pode determinar que tipos de gente devem viver mais plenamente? Quem tem mais direito a ser feliz e viver com dignidade? Quem não tem?
Nesse sentido, concluo, parafraseando Marcos Rolim:
“Por tudo que já foi dito”, que o Dia das Bruxas “revigore a mais radical das feitiçarias: aquela que se verifica quando os amantes se enredam nos mais generosos sentimentos; e que as bruxas deste tempo e dos tempos que virão possam prosseguir com seus mistérios, possam aperfeiçoar suas fórmulas e porções, para que um dia todos sejamos permanentemente ‘encantados’”.
*Fátima Cleide (PT-RO), 44 anos, é senadora, professora, sindicalista e relatora do Projeto de Lei da Câmara 122/06, que torna crime o preconceito contra homossexuais.
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