Luiz Alberto dos Santos *
Desde o dia 8 de abril de 2015 vem sendo noticiada, amplamente, a eventual extinção da Secretaria de Relações Institucionais, órgão essencial da Presidência da República, e a transferência de suas competências para a Vice-Presidência da República, passando o vice-presidente da República a exercer as atribuições hoje conferidas ao ministro de Estado-chefe daquela Secretaria. Essa seria uma modificação relevante, em vista da trajetória institucional desse órgão essencial da Presidência, que já experimentou diferentes inserções – ora como parte da Casa Civil, ora como secretaria autônoma, incluindo ou não competências relativas à Secretaria do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social – e que, desde 2004, tem como competências assistir direta e imediatamente ao presidente da República no desempenho de suas atribuições e, em especial na coordenação política do governo, na condução do relacionamento do governo com o Congresso Nacional e os partidos políticos e na interlocução com os Estados, o Distrito Federal e os municípios (conforme dispõe a Lei nº 10.683, de 2003)
A solução de conferir-se ao vice-presidente da República a responsabilidade de titularizar uma pasta ministerial não é nova. Já foi adotada no governo Lula, quando da nomeação do vice-presidente José Alencar para o cargo de ministro da Defesa, exercido cumulativamente. Há também experiências de vice-governadores e vice-prefeitos que exercem ou exerceram, também por nomeação, o cargo de secretário estadual ou municipal, acumulando as funções desses cargos com o daqueles[1].
No entanto, a solução de extinguir-se uma pasta ministerial, e transferir suas competências em caráter definitivo e total para a “Vice-Presidência”, é inédita e merece exame mais cuidadoso, à vista de sua virtual inconstitucionalidade no plano formal e material.
A rigor, inexiste, no ordenamento jurídico nacional, uma instituição chamada “Vice-Presidência da República”. O que existe é, nos termos do Decreto-Lei nº 1.066, de 29 de outubro de 1969, uma unidade voltada ao exercício dos “serviços administrativos” da Vice-Presidência. Com fundamento nesse Diploma legal,o Decreto nº 4.609, de 26 de fevereiro de 2003, define a estrutura regimental da “Vice-Presidência”, composta por um Gabinete, Assessorias e Ajudância-de-Ordens, voltada a assistir e assessorar o vice-presidente no desempenho de suas atribuições, e prestar-lhe serviços de natureza pessoal.
Não há, porém, norma legal dispondo sobre quais seriam essas atribuições, sendo necessário o exame do texto constitucional.
Define o caput do art. 79 da Constituição que cabe ao Vice-Presidente substituir o Presidente, no caso de impedimento, e suceder-lhe, no de vaga. O parágrafo único desse artigo estabelece que “o Vice-Presidente da República, além de outras atribuições que lhe forem conferidas por lei complementar, auxiliará o Presidente, sempre que por ele convocado para missões especiais.”
Enquanto o art. 84 da Carta Magna, e diversos outros, definem o que compete ao presidente da República, e enquanto o art. 76 define que “o Poder Executivoé exercido pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado” – silenciando quanto ao que cabe ao Vice-Presidente -, o art. 87 define as competências e atribuições dos Ministros de Estado.
Tem-se, assim, que ou o Poder Executivo é exercido pelo presidente da República, diretamente, ou por ele e seus ministros de Estado, que são seus auxiliares imediatos. O vice-presidente da República, dessa forma, só pode exercer o Poder Executivo em duas circunstâncias, sem a necessidade da lei complementar referida no art. 79, parágrafo único: quando substitui o Presidente, no caso de ausência ou impedimento, ou se for investido no cargo de ministro de Estado. A sua participação como membro do Conselho de Defesa Nacional e do Conselho da República, órgãos de consulta ao presidente da República, está assentada na própria Constituição (art. 90 e 91).
Vale lembrar que a Lei Complementar de que trata o art. 79, parágrafo único, nunca foi editada – embora algumas proposições tenham tramitado com esse propósito no Congresso Nacional desde 1988 – e há controvérsia sobre qual seria o seu conteúdo possível.
A atual redação do art. 79, parágrafo único, é a mesma que constava da Emenda Constitucional nº1, de 1969 (art. 77, § 2º). Embora não haja dúvida sobre a necessidade de lei complementar para atribuir, em caráter permanente, competências ou funções ao vice-presidente, não expressamente previstas na Constituição, o conteúdo dessa lei complementar depende, essencialmente, de juízo de conveniência, das circunstâncias e de um acordo político, uma vez que ampliariaas funções de um cargo que tem previsão constitucional apenas e tão somente como substituto eventual do presidente da República, ou membro de órgãos de consulta, e não como um “co-presidente da República”. Essas competências ou funções, segundo Pontes de Miranda[2], “são atribuições de poderes executivos”. E, como tal, somente são atribuíveis por lei ordinária aos ministros de Estado, os quais são de livre nomeação e exoneração do Presidente da República. Sendo o Vice-Presidente um cargo político, eleito para mandato certo, não seria boa solução, no regime presidencialista, conferir à lei ordinária a possibilidade de ampliação de suas atribuições, visto que o titular do cargo, não se havendo bem na função, não poderia ser substituído ou exonerado do cargo de “vice-presidente”. Já se o vice-presidente for investido, concomitantemente, no cargo de Ministro de Estado, a sua exoneração desse cargo é administrativamente possível, sem prejuízo das suas demais funções constitucionais, sendo que as atribuições do cargo ministerial – e do órgão ministerial – são exercidas em caráter permanente, e não temporário, excepcional ou casuístico, pelo seu titular.
Já quanto a sobre quais seriam as “missões especiais” para as quais poderia ser convocado o vice-presidente, as quais tem caráter necessariamente transitório e excepcional – e por essa razão classificadas como “especiais” -, assim ponderava Pontes de Miranda, considerando o sistema constitucional de 1969:
“(…) O Presidente da República pode, entre outras missões, atribuir ao Vice-Presidente da República: a) exercer, em parte determinada, a direção superior da administração; b) colaborar na iniciativa de projeto de lei, de competência privativa do Presidente da República; c) colaborar no exame dos projetos de lei enviados para sanção; d) colaborar na estruturação, na discriminação de atribuições e funcionamento dos órgãos da administração federal; e) colaborar na mantença das relações com os Estados estrangeiros; f) colaborar para a celebração de tratados, convenções e atos interestatais; g) opinar quanto à futura atitude do Presidente da República em caso de guerra, ou de declaração de paz; h) colaborar no exame da situação para a permissão de trânsito de forças estrangeiras no território nacional, ou na permanência temporária, observados os pressupostos apontados pela lei complementar; i) auxiliar no comando supremo das forças armadas; j) colaborar no exame da situação para a mobilização nacional, total ou parcial; k) colaborar no tocante ao ato de decretação de estado de sitio; colaborar no tocante ao ato decretativo de intervenção federal e nos atos de execução; l) auxiliar no ato de autorização de Brasileiro a aceitar pensão, emprego ou comissão de governo estrangeiro; m) colaborar no estudo de proposta de orçamento; n) colaborar na feitura da mensagem ao Congresso Nacional, com a exposição, com a exposição da situação nacional; o) auxiliar no exame das contas do Presidente da República; p) colaborar nos estudos dos fatos invocados para indulto ou comutação de penas; q) colaborar no exame de atos que sugerem os Ministros de Estado, ou alguns deles (…).”[3]
Sobre a questão, informa José Cretella Junior[4]:
“A lei complementar, desde 1967 (art. 79, § 2º, última parte), passando por 1969 (art. 77, § 2º, primeira parte) e chegando em 1988 (art. 79, parágrafo único, primeira parte) tem sido o veículo jurídico adequado para conferir atribuições ao Vice-Presidente da República, exceto na hipótese em que o Chefe do Executivo o convoque diretamente para missões especiais. Estas não precisam constar necessariamente da lista de atribuições que a lei complementar, taxativamente enumerar, não se excluem, por outro lado. Há, pois, atribuições que, se não constarem do rol das enumeradas na lei complementar, o Vice-Presidente não pode desempenhar, mesmo que o Presidente as outorgue. (…)
O Vice-Presidente deverá auxiliar o Presidente, sempre que for por este convocadopara missões especiais. O art. 77, § 2º, da EC nº 1, de 1969, e o art. 79, parágrafoúnico da Constituição de 1988, aludem, pela primeira vez, às missões especiaisatribuídas ao Vice-Presidente da República. Quais seriam essas atribuições? Aresposta encontra-se na enumeração taxativa de tarefas que competem à União, art.8º da EC nº 1, de 1969 e no art. 21 da Constituição de 1988.”
Há, assim, um leque amplo de possibilidades de missões “especiais”, consideradas “impróprias” na análise de Alexandre de Moraes[5], mas, em todos os casos, essa atribuição será transitória, voltada a um resultado específico e a serem exercidas num horizonte de tempo, não se integrando, em caráter permanente, às responsabilidades e prerrogativas do cargo. O próprio caráter da “convocação” já informa essa precariedade e transitoriedade, não produzindo uma solução institucional de natureza permanente, como reclamam os princípio da continuidade administrativa e da legalidade
Segundo informa o sítio da Presidência da República na internet, o atual vice-presidente da República exerce a presidência, pelo lado brasileiro, de dois fóruns de discussões internacionais com os governos da China e da Rússia: a Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Cooperação e Concertação (Cosban) e a Comissão de Alto Nível de Cooperação Brasil-Rússia (CAN). Por determinação da presidente da República, coordena o Plano Estratégico de Fronteiras, lançado no mês de junho de 2011.
Assim, destaca-se a conclusão de que, por meio de medida provisória, não pode o chefe do Poder Executivo atribuir ao vice-presidente da República competências até então exercidas por órgão de natureza ministerial, e assim atribuídas a um ministro de Estado, culminando na extinção do cargo ministerial e da estrutura para tanto criada por Lei, como requer o art. 48, XI da Constituição. Ainda que a mera extinção de órgão possa se dar por medida provisória, as competências a ele atribuídas ou seriam igualmente extintas, ou transferidas para outro órgão ministerial, ou entidade autárquica ou fundacional. Mas somente por lei complementar tais competências (e as estruturas para tanto constituídas) poderiam ser atribuídas ao vice-presidente da República, dado o seu caráter permanente E, como fartamente sabido, medida provisória não pode veicular conteúdo reservado à lei complementar pela Constituição (art. 62, §1º, III).
Já a atribuição, por mera decisão presidencial, de missão especial ao vice-presidente, mediante “convocação”, não pode implicar a extinção de um órgão ou cargo ministerial, e terá que ser, necessariamente, transitória, e incompatível com o exercício típico, em caráter permanente, de atribuições ministeriais, sob pena de conflito direto com o disposto no art. 79, parágrafo único, já citado.
Assim, a solução possível, e que melhor atende aos limites constitucionais, é a investidura do vice-presidente, pelo prazo que convier politica e administrativamente, no cargo de ministro de Estado, mantendo-se a estrutura ministerial existente, o que, sequer, requer a aprovação do Congresso Nacional para sua efetivação.
Se, contudo, estiver configurada a extinção do cargo ministerial e do órgão, e a transferência das atribuições e competências do mesmo para a “Vice-Presidência”, vale dizer, para o vice-presidente da República, em caráter permanente, estaremos diante de inconstitucionalidade formal e material, visto se caracterizar imprópria e indevida atribuição de funções de Poder Executivo, em caráter permanente, ao vice-presidente da República, extrapolando os limites estabelecidos pela ordem constitucional.
Soluções políticas são, sem dúvida, necessárias para que o bom funcionamento do Governo e do sistema político atendam às necessidades do Estado e da Sociedade. Essas soluções, porém, hão de se conformar ao que determina e estabelece a Carta Política, pois as contingências e casuísmos não podem estar acima da Constituição, cujo sentido é assegurar a institucionalidade e previsibilidade do exercício do Poder pelos seus titulares eleitos ou nomeados politicamente. Independentemente do mérito individual ou da conveniência de uma ou outra solução, há que se preservar o que define o ordenamento constitucional, que oferece soluções seguras para essas situações
* Consultor legislativo do Senado Federal. Advogado. Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental. Mestre em Administração e Doutor em Ciências Sociais. Professor da EBAPE/FGV. Ex-subchefe de Análise e Acompanhamento de Políticas Governamentais da Casa Civil – PR (2003-2014).
[1] Um caso notório é o exercício pelo ex-vice-governador do Rio Grande do Sul Miguel Rossetto, do cargo de Secretário de Governo, durante a gestão Olívio Dutra, no Estado do Rio Grande do Sul (1999-2002)
[2]PONTES DE MIRANDA. Comentários à Constituição de 1967. Com a Emenda n. 1, de 1969. Tomo III (Arts. 32-117). 2.ed., revista. São Paulo:Revista dos Tribunais, 1969, pp. 300.
[3] Idem, p. 303-305
[4] CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição de 1988. vol. V. Artigos 38-91. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991.
[5]MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Anotada e Legislação Constitucional. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 1.259.