Agassiz Almeida *
“Paulista foi senzala de escravos. Me tirem de lá”
“Não façam da minha eternidade uma gargalhada universal”
Na história da humanidade, certos vultos se fizeram fenômenos e vararam a vida como verdadeiros meteoros, alguns iluminando o mundo com suas criações, obras e ações, e outros a desencadear tragédias. Ariano Suassuna veio para a vida não como um desafiador ou contestador, mas um criador de mundos de frenéticas construções utópicas onde ele próprio se transvestiu no personagem-mor de um teatrão mambembe.
Não soube odiar e nem amar, sonhou.
Geniais pensadores erigiram as suas obras com raízes fincadas na realidade, onde nela mergulharam, como Camões, Shakespeare, Victor Hugo, Leon Tolstoi, Romain Rolland, Dostoievski, Euclides da Cunha. Ariano Suassuna, não. Partiu do imaginário e nele fez desfilar os seus personagens. Lá estão eles, João Grilo, Chicó, Bispo, Pe. João, Vicentão, melancólicos, alegres, simplórios, tresloucados, quase todos fronteiriços à esquizofrenia. Na Ilíada, Homero parte de Ítaca para chegar ao universo fantasmagórico dos xiquexiques, macambiras e facheiros de Taperoá. No Auto da Compadecida, Ariano, com João Grilo e Pe. João se alçam a Cabaceiras e falam ao mundo.
No cenário das terras empedradas dos sertões nordestinos, Euclides da Cunha e Ariano Suassuna, gigantes da nossa literatura, confluíram e se contestaram, no imenso anfiteatro em que a realidade e o celestial se interagem. O ensaísta dos chapadões ressequidos de Canudos, no fanatismo místico de Antônio Conselheiro escancarou a selvagem distância abissal dos dois brasis: o dos oligarcas do café e do açúcar, e, contrastantemente, a assustadora miséria dos nordestinos condenados à ignorância e à fome.
E o dramaturgo paraibano como construiu a sua epopeia de risos? Antes de armar a sua tenda nas cortes angelicais, ele cavalgou no misticismo partindo dos rincões caririzeiros, e neles fez a sua Meca.
Voltaire fez a Europa rir da idiotia de Leibniz: Este é o melhor dos mundos possíveis. Chaplin gargalhou dos ditadores boçais. Ariano Suassuna entre a prepotência do poder e a tolice dos simplórios, riu dele próprio e renegou a estupidez humana. Criou uma nova forma de olhar a existência. Conduziu-se com indiferença face aos entrechoques das vaidades humanas.
Assim varou a ditadura Vargas (1937/45) e a ditadura militar (1964/85). Certa feita, indaguei-o sobre os ditadores. Respondeu-me: Meninões atrevidos brincando de armas. Bertolt Brecht vomitou nos abocanhadores do poder.
Ariano Suassuna olhou na alma humana num movimento de constante emoção entre o riso e a melancolia. Para tanto, fez-se bobo dele mesmo, e desta forma melhor conheceu a condição humana. As suas aulas- espetáculo retratam bem o seu permanente retorno às paragens desafiadoras dos sertões.
Em devaneios, embalava-se de Recife a Taperoá; destes dois polos navegava com os seus personagens em meio ao utópico e aos encontrões com a vida. Dois fenômenos na sua polivalente obra se encontram: o universal e o telúrico. Ariano não deixou apenas um legado literário. Descortinou uma visão cômica do mundo, argamassado no riso dos simples e no desencontro dos homens de boa-fé.
Viveu a vida na amplidão de um enorme anfiteatro.
Viajante incansável pelas paragens das solidões telúricas, ele arrancou do drama da vida os justos e simplórios e os lançou nos labirintos do misticismo.
Ao apagar das luzes da ribalta do genial utópico paraibano ele pranteou um enorme soluço a João Grilo e Pe. João: Oh, companheiros, eu queria ter me eternizado nos sete palmos de terras livres dos meus cariris de Cabaceiras e Taperoá. Paulista foi senzala de escravos. Tirem-me de lá. Rindo eu atravessei a vida. Não façam da minha posteridade uma gargalhada universal, não lancem contra mim esta maldição seculo seculorum, senão eu grito da tumba: Aleluia, aleluia, aleluia.
* Agassiz Almeida, escritor, ativista dos direitos humanos, ex-deputado federal constituinte, autor das obras: 500 anos do povo brasileiro (Ed. Paz e Terra), A república das elites (Ed. Bertrand Brasil), A ditadura dos generais (Ed. Bertrand Brasil), O fenômeno humano: Os verdadeiros objetivos da viagem de Charles Darwin na H.M.S. Beagle (Ed. Contexto).
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