Márcia Denser
A propósito de livros e autores de formação de que estive tratando nas duas últimas colunas, chega às livrarias este fim de mês a obra mais importante de mestre Antonio Cândido, Formação da literatura brasileira, pela editora Ouro Sobre Azul, num projeto coordenado por sua filha Ana Luísa Escorel, que há dois anos reedita toda a obra do pai.
Em 2003, durante minha defesa de tese na PUC de São Paulo, sede da corrente literária formalista liderada por Haroldo de Campos e Décio Pignatari, ocorreu um certo mal-estar na banca pelo fato de eu tê-la embasado com muitas idéias de Antonio Cândido, ligado à corrente antagônica, de inspiração sociológico-marxista, predominante na USP.
Mas em minha especialização como pesquisadora de literatura eu buscava antes integrar diferentes abordagens críticas do que meramente descartar umas por outras, intuindo secretamente – e com toda razão – que essa polêmica se tornara anacrônica. Posto que horrores bem piores hoje nos assolam, nenhum pior e nem mais horrível do que o colapso da própria crítica, desde que arte e cultura têm sido implacavelmente colonizadas pelo interesse econômico.
Em meu processo de escritora brasileira que, num momento da vida, sentiu necessidade de pensar e entender seu país de ontem e de hoje, que retornou à universidade nos anos 90 em busca de respostas para um mundo que se transformara totalmente, mestre Antonio Cândido apareceu como o guia que favoreceu as melhores aproximações, permitindo um reajuste de foco.
Porque a característica central do Mestre é a articulação sofisticada entre sociedade e literatura. Por conta dessa capacidade de análise, suas contribuições são decisivas para a compreensão da sociedade brasileira. Para ele, o essencial no tocante às relações da ficção com a sociedade é demonstrar de que maneira as condições sociais são interiorizadas e se transformam em estrutura literária, conjugando portanto estrutura literária e função histórica.
Roberto Schwarz lembra que, à epoca da publicação da Formação, em 1959, Antonio Cândido exercia uma posição avançada, opondo-se ao positivismo rasteiro dos estudos literários tradicionais, sendo ao mesmo tempo criticado por não ter incluído na Formação, por não fazerem parte dela, figuras como Gregório de Matos e o padre Vieira. Maliciosamente, Schwarz comenta que outros críticos, “ou os mesmos em momentos diversos”, o acusam de bitolamento nacionalista por historiar uma aspiração nacional, referindo-se a Haroldo de Campos em “O seqüestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de Matos”. Assinalando que AC tem um conceito materialista e não tradicionalista da tradição, observa que há uma complementaridade entre o tradicionalismo severo e a capacidade de revolucionar uma forma, como se na ausência de tradição rigorosa, as mudanças radicais se tornassem impensáveis.
Ou seja: os vanguardismos concretistas dos irmãos Campos tinham que se reportar à Vieira e Gregório de Matos, do contrário não fariam sentido! E este é apenas um dos nós da polêmica PUC/USP citada anteriormente.
Na Formação, o sistema literário brasileiro – entendido como interação autor-obra-público – se define entre 1750 e 1880, na articulação de arcadismo, romantismo e Proclamação da Independência, culminando com o surgimento dum escritor da envergadura de Machado de Assis.
É em Machado que a formação se conclui. Por quê? Entre outras razões, porque ele utilizou outros autores brasileiros, ainda que muito inferiores a ele, como precursores para construir sua obra. Não importa, as influências lá estão, e um sistema literário só existe quando acontece essa integração local de autores vivos e mortos, a despeito das influências estrangeiras.
Isto é, só foi possível surgir um escritor de porte universal como Machado porque já havia um sistema literário nacional.
Ensina Antonio Cândido que Machado de Assis soube ver e aproveitar meticulosamente os acertos de nosso romance romântico, de resto tão fraco, redimensionando e solucionando problemas armados por autores como Martins Pena, Manuel Antônio de Almeida, Joaquim Manoel de Macedo, José de Alencar, sem prejuízo da influência de Lawrence Sterne.
Como Flaubert, seu contemporâneo na França, Machado havia estudado seus predecessores, testado suas situações ficcionais, racionalizado seus procedimentos, mas a modificação (em Memórias Póstumas de Brás Cubas) que desloca todo o resto é a incorporação do narrador humorístico de Tristam Shandy (1). Segundo R. Schwarz, o resultado é extraordinário, sobretudo como revelação de dimensões profundas da sociedade brasileira. Por isso, não é exagero considerar Machado como um artista do mesmo nível que Flaubert, que, também servindo-se da tradição do romance francês e aparando os excessos em Stendhal e Balzac, realizou em sua pureza o ideal da prosa narrativa moderna.
No que se refere à literatura universal, a posição de Machado não é tão “central” quanto a de Flaubert. Como não é sua língua, já que o francês carrega uma tradição talvez milenar de pensamento e de exercício do idioma. Mas, precisamente por suas “desvantagens”, Machado de Assis é absolutamente genial.
Contudo, o Mestre adverte que o importante é uma literatura média, feita por muitos escritores médios. Porque o gênio surge até no deserto do Saara, num oásis pode surgir um Homero e fazer uma Odisséia. O gênio é uma coisa, a literatura é outra coisa, isto é, um processo histórico de natureza estética, que se define pela interrelação das pessoas que a praticam, que criam uma certa mentalidade e estabelecem uma certa tradição. Quando acontece isso, a literatura está constituída.
Assim, Antonio Cândido foi como o sacerdote nas cerimônias de iniciação: levou-me pela mão até o limiar dos mistérios (para o iniciante, a visada crítica tem algo de profundamente misterioso) e retirou-me a venda dos olhos.
(1) A vida e as opiniões de Tristam Shandy foi a fundamental obra publicada ainda no século XVIII pelo irlandês Laurence Sterne, que morreu em Londres em 1768.