Dentre os valores da tradição humanística que fundam toda a luta da cidadania no mundo, um dos que mais estão em xeque atualmente é o da propriedade. Esta semana mesmo aconteceu um fato inesperado em Florianópolis, capital do estado de Santa Catarina, e que mostra bem o risco que uma sociedade corre quando não entende ou não reconhece o correto valor da propriedade.
Na chamada praia do Rio Vermelho, um grupo se instalou em um terreno da União federal, após ter sido expulso de uma outra tentativa de invasão, mas esta de uma propriedade privada. Diante da aparente apatia da polícia local na retirada dos invasores, moradores locais simplesmente partiram para cima dos invasores, fazendo justiça com as próprias mãos. Diante da reação inesperada, os invasores decidiram recuar e desistiram da invasão.
E é aí que entre o necessário entendimento do valor da propriedade para a garantia das instituições e da própria democracia. Quando um grupo decide tomar para si a propriedade de outro – e as instituições de Estado não fazem nada, atuam com ineficiência ou mesmo acobertam os delinquentes – abre-se espaço para que os cidadãos deixem de respeitar instituições e mesmo as leis vigentes, um perigosíssimo precedente.
A esse efeito de desrespeito generalizado às leis e a quem deveria resguardá-las damos o nome de “anomia”. Como descreveu o sociólogo francês Emile Durkheim, anomia é o “estado de uma sociedade caracterizada pela desintegração das normas que regem a conduta dos homens e asseguram a ordem social”.
Ou seja, quando uma sociedade atinge o nível de anomia em suas relações, deixam de existir as instituições que garantem os valores mais básicos da cidadania, que são a vida, a justiça, a liberdade e a propriedade. Sobra apenas a lei do mais forte, que submete as minorias e os mais fracos ao seu jugo. É o fim da democracia.
Outro importante pensador da anomia é o sociólogo alemão Ralf Dahrendorf que, em seu livro “A lei e a ordem”, alerta para o risco da anomia que uma crescente impunidade pode trazer. A anomia (de nomos, do gr. lei, norma), como fenômeno de sociedade sem processo legal nem instituições que o assumam, começa quando um número elevado de violações de normas torna-se público pela mídia sem a correspondente punição exemplar.
É quando parece que o crime vale a pena ser praticado e a opinião dominante é que é certo se escapar da pena. Ou seja, a chamada cultura de impunidade brasileira tem dado estatístico quando as pesquisas dos tribunais concluem que apenas 4% das denúncias de crimes têm seus processos concluídos. Se é perfeitamente compreensível que haja mudanças de entendimento de valores em algumas áreas delimitadas da ordem social e em nome de uma nova concepção de liberdades civis, como no caso do homossexualismo, da eutanásia e do aborto, isso não significa admitir uma generalização da tolerância para com delitos de outra natureza como corrupção pública e a invasão de propriedades, o que caracterizaria o perigo da anomia.
PublicidadeE um começo preocupante dessa sequência de eventos é justamente o afrouxamento do conceito de propriedade. Temos visto de algum tempo para cá crescer a interpretação do conceito de propriedade social. Ou seja, se é para fins sociais, não tem problema invadir, tomar ou mesmo depredar. Se hoje são terrenos privados ou públicos, amanhã pode ser a sua casa, seus pertences, seus equipamentos de trabalho, ou sabe-se lá o que mais. Sobre o tema, vale uma conferida em um artigo do economista Rodrigo Constantino, escrito em fins do ano passado, mas ainda bastante atual.
Como diz Dahrendorf em seu livro: “O domínio da lei, no sentido de um conjunto de direitos formais para todos e o devido processo para defendê-los, é uma das grandes aquisições da história humana, uma aquisição liberal, não no sentido partidário, mas no sentido do progresso da liberdade humana.”.
Todos esses valores envolvem obrigatoriamente o respeito ao direito do outro. Compreender isto é fortalecer a luta da cidadania ainda em seu processo de consolidação no Brasil.