Marcelo Heleno *
Um dia chego em casa e me deparo com um grupo de operários furando o canteiro central da avenida. Vou lá para saber do que se trata. Naturalmente, alguém me diz que é uma rede de alta tensão. Diante da incredulidade de um cidadão comum, pouco habituado, até então com termos como faixa de servidão, campos magnéticos e energia iônica, alguém diz que a rede tem que passar em algum lugar. E aquele lugar era a porta da minha casa.
A Celg, empresa responsável pela distribuição de energia em Goiás, é considerada hoje a pior do país no setor. Goiânia tem um fornecimento que está beirando o caótico. A decisão da empresa é construir uma rede, interligando três subestações. Tudo de acordo com plano do setor, comandado pelo Ministério das Minas e Energia. Até aí, tudo bem. A pergunta é: por que a decisão de colocar essa rede em áreas de grande adensamento populacional?
A resposta que a empresa dá é que ela não tinha dinheiro para fazer um trajeto maior, utilizando o canteiro central do Anel Viário de Goiânia. Não tem dinheiro, pensa o incrédulo cidadão. Aí, fica outra pergunta: quanto custa uma vida?
Esta é mais uma daquelas questões que precisam ser regulamentadas no país. Não existe um marco legal. Existem normas, que são técnicas, e que podem variar de acordo com o interesse em torno de uma obra. No caso, foram comprados suportes diferentes do tradicional e há todo um discurso de diminuição dos riscos à saúde e ao meio ambiente.
Mas, quando vamos consultar especialistas do setor, a conclusão continua que essas redes fazem mal. Não há tecnologia que elimine os danos, que vão desde o barulho, especialmente no período noturno, às constatadas alterações genéticas que, por sua vez, podem multiplicar doenças congênitas e dobrar a incidência de tipos de câncer, especialmente em crianças. Fica a pergunta: quanto vale a vida?
No caso em questão, que tem a ver com a realidade de Goiânia, os absurdos vêm se multiplicando. São duas linhas de 138 kV. Considerando que a carga é de 276 kV, o licenciamento ambiental teria que ser feito por órgão estadual, com a realização de audiências públicas para aprovar o EIA/Rima. Isso não foi feito.
Quem atesta que não há danos à saúde são engenheiros da própria empresa. Não há estudo conclusivo sobre o assunto e não há médico que garanta que não haja dano.
As distâncias contidas no regulamento da Celg e no projeto da obra são divergentes. Nos dois casos, estão ainda abaixo do que é preconizado pela própria Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Há o absurdo, já denunciado por um grupo de moradores, da instalação de postes de alta tensão na calçada de uma pequena rua residencial, sem obedecer qualquer critério.
Mesmo constando nos projetos a necessidade de remoção de escolas, postos de combustíveis e igrejas, essa empresa não fez a menor comunicação sobre o fato. Isso contraria qualquer princípio de transparência que deve (ou deveria) nortear uma estrutura pública.
Da mesma forma, causa estranheza que, mesmo depois de quase dez anos se debruçando sobre normas e projetos, a companhia não tenha se alertado para a existência de uma adutora em um trecho de 4 Km.
Tão lamentável quanto essa série de fatos tem sido o posicionamento de autoridades no Executivo e no Judiciário de Goiás, que aceitam passivamente o argumento de que a garantia de fornecimento de energia para a Grande Goiânia é mais importante do que a saúde, a tranquilidade e o patrimônio de cerca de 20 mil moradores. Quanto vale uma vida? Isso é o que uma voz continua a me perguntar.
A conclusão me parece óbvia. Não tenho resposta para essa pergunta. Como não tenho justificativa para a falta de sensibilidade de certas autoridades, especialmente no momento em que o país das ruas e das urnas manda recados seguidos de que caminha e é necessária uma mudança de práticas e princípio para assegurar uma vida melhor.
Não cogito mudar de minha residência, uma bela avenida que corta um parque ambiental e que tem ipês no canteiro central. Ipês que estão condenados por essa obra. Não pretendo mudar de cidade, nem de país, como muita gente pensa nessa hora.
A maior certeza que tenho, depois de dois meses de pesquisas, conversas e negociações é de que ninguém merece a vizinhança da alta tensão. Não à toa ela está presente em regiões afastadas, garantindo a convivência pacífica da necessidade do progresso com a boa qualidade de vida da população.
É isso que espero, especialmente das autoridades do setor energético, que devem entender que a engenharia (incluindo a financeira) é fundamental na execução de obras desse porte. Como são importantes os aspectos de urbanismo, de saúde pública, do diálogo e da civilidade.
Dentro de um grupo, continua convicto na luta contra a alta tensão no meio de uma área habitada. Isso é desafiador. Porque, na medida que a sociedade permite, ela pode avançar sem limites. O que é um problema de 20 mil hoje, pode ser de 200 mil pessoas amanhã. Apesar de necessária, a alta tensão continua sendo essa estranha vizinha indesejada.
* Marcelo Heleno é jornalista e morador de um dos oito bairros atingidos pela construção de rede de alta tensão em Goiânia
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