As críticas da classe alta e média contra o sistema de cotas (e contra a ação afirmativa em geral) estão sendo favorecidas pelos erros e a apatia dos poderes públicos no processo de sua implantação.
Um dos problemas é a determinação étnica de um eventual candidato. É verdade que as universidades são autônomas, mas as pastas vinculadas com justiça e direitos humanos deveriam dialogar com os conselhos universitários que sejam amigáveis com a ação afirmativa. Já a UnB deu uma amostra de bom senso ao substituir, há 3 anos, o sistema de identificação racial fotográfico (que tinha conduzido a situações paradoxais) por um processo de entrevistas. Mas isso é apenas um exemplo, e provavelmente precisa ser aprimorado.
O principal aspecto das cotas étnicas não é a condição racial real do candidato, porque ela pode não ser decisiva e porque sua determinação não possui critérios científicos estritos. É bem conhecido que mesmo as definições antropológicas mais rigorosas não podem incluir dentro de uma “raça” todos os indivíduos que, intuitivamente, pensamos que pertencem a ela (embora possa fazê-lo com grande parte).
Por outro lado, ainda que consideremos exemplares fenotipicamente extremos de duas etnias (por exemplo, o ditador sudanês al-Bashir e a primeira ministra alemã Merkel), não existe correspondência genética que meça essa distância. Mas, mesmo que existisse uma medida “infalível” da pertinência racial de uma pessoa, essa expressão quantitativa não teria nenhum interesse para combater o racismo. Os racistas pragmáticos não estão interessados na biologia molecular, mas no aspecto físico e na condição social daqueles que foram escravos de seus ancestrais, e que hoje disputam um lugar na sociedade. O racismo brasileiro, que não é subjetivamente diferente do sul-africano ou daquele do Bible Belt dos EUA (embora o seja em seus aspectos jurídicos), não identifica negro com o portador de certa fórmula genética, mas como membro de uma comunidade que o racista odeia. Os racistas querem livrar-se dos afrodescendentes não para eliminar um modelo genético, mas para mantê-los longe das instituições que eles consideram (e, na prática, são) seu patrimônio.
Então, a maneira correta de identificar alguém como negro ou pardo, não é a fotografia, nem o exame genético, nem a declaração isolada do próprio interessado. A entrevista deve tentar, através de uma conversa elaborada, determinar que: (a) o candidato é identificado pela população como sendo “negro”, “pardo”, “mulato” ou coisa parecida; e que (b) em função dessa identificação torna-se alvo de animosidade, discriminação ou perseguição.
Outra dificuldade técnica é a forma confusa em que está definida a relação entre cotas raciais e sociais. Não é um problema combinatório que mereça a medalha Fields. É um assunto simples que pode ser resolvido com bom senso, para evitar redundâncias e omitir os casos em que sua aplicabilidade não seja indispensável, bem como tornar variáveis os tamanhos das cotas para que acompanhem a mutação da população de aspirantes.
Outro grave problema dos poderes públicos é a falta de interesse pela publicidade e a educação massiva sobre assuntos de índole racial (e de direitos humanos, em geral). Falam-se, escrevem-se e transmitem-se por TV numerosas falsidades e alguns raciocínios descabidos sobre a ação afirmativa, mas o governo não refuta essas mentiras.
Numerosos comunicadores dizem que o sistema de cotas fracassou em todo o mundo, que diminuiu o nível científico das universidades, que criou tensão social e outros slogans. Há multidão de estatísticas internacionais de livre acesso que mostram a grosseira falsidade dessas mensagens, e que os ministérios responsáveis pela educação e os direitos humanos deveriam divulgar. Também estão os erros conceituais. Fala-se que o Brasil é um país miscigenado, e é verdade que 80% ou mais do povo tem essas características. Mas não se diz que a miscigenação é quase inexistente nas elites, que são as que governam as universidades, especialmente as mais famosas. A miscigenação dá ao povo brasileiro seu estilo cordial e alegre, mas os donos das instituições não estão interessados nessa questão, tendo muitos jovens brancos de classe média que fazem fila para o vestibular.
Permite-se que se incite à violência as minorias que estudam nas universidades ditas “de excelência”, ameaçando com as explosões de ressentimentos (eles dizem “indignação”) dos que sejam preteridos. A omissão do governo para responder a isto mostra falta de autoridade ou de interesse. Se uma pessoa conseguiu uma vaga por um sistema de cotas legítimo, os que se ofendem por isso podem reclamar à vontade, mas não têm o direito de ameaçar ou de gerar conflitos. A ideia de “acalmar” o revanchismo racista, em vez de combatê-lo, não é concebível em nenhuma democracia.
É bom lembrar que até o conservador e pacato presidente Eisenhower enviou tropas da Divisão Aérea 101 a Arkansas e federalizou a guarda armada desse estado, passando por cima do fascista governador Faubus, para proteger apenas nove estudantes negros. E tudo isso há mais de 54 anos e três meses.
Quantos anos estamos atrasados a respeito de nossos futuros colegas nos assentos permanentes do Conselho de Segurança de ONU?
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