Márcia Denser*
O filme Capote, protagonizado pelo brilhante Philip Seymour Hoffman (Ninguém é perfeito), que acaba de ganhar o Oscar de melhor ator por sua atuação, chama a atenção – pelo menos a minha – para a essência e a real importância dum livro como A sangue frio. Porque agora temos 40 anos de visão crítica diacrônica.
No prefácio de um de seus últimos livros, Capote explica sua atração pelo jornalismo como forma de arte autônoma, uma vez que pouquíssimos escritores da série literária se dedicavam ao jornalismo narrativo, salvo sob a forma de ensaios de viagem ou autobiografias. Ao escrever a novela The muses are heard (1955), ele descobre tanto a fórmula como seu objetivo: queria escrever um romance jornalístico, algo em grande escala que contivesse a verossimilhança do fato, a comunicação imediata do cinema, a densidade da prosa e a precisão da poesia.
Quatro anos depois, em 1959, um “instinto misterioso” o guiou para o assunto: o assassinato dos quatro membros de uma família – pai, mãe, filho e filha – a tiros de espingarda no rosto, na pequena cidade de Holcomb, no Kansas. Um crime sem motivo aparente e sem pistas. Porque não havia como ligar as vítimas aos assassinos, uma dupla de marginais, dois rapazes pobres atraídos pela marginalidade porque suas vidas eram uma progressão feia e suja do nada ao nada.
O motivo seria o roubo, mas ao constatarem que na casa não havia dinheiro ou jóias e que haviam caído na conversa fiada dum parceiro de prisão, subitamente, numa seqüência brutal, vêem-se matando aquelas pessoas tão honestas, tão boas, tão respeitáveis, tão seguras em sua bela casa, suas terras, seu saldo bancário, tudo inapreensível aos ladrões. Sessenta dólares, um binóculo e um rádio Zenith foi tudo que levaram. Perry Smith, um dos assassinos: “O Sr. Clutter não me fez nada, não foi alguma coisa que algum deles tenha feito, não sei, acho que eles tiveram que pagar por todas as coisas ruins que aconteceram na minha vida”. De certa forma, a morte daquelas pessoas fora um acidente impessoal, como se um raio as tivesse atingido.
Jung ensina que se a sociedade está mal, então deve existir algo muito errado com o indivíduo, e este é o fim do paraíso da inconsciência e da inocência coletivas. Nessa perspectiva ampla, A sangue frio anuncia o fim da “era Eisenhower”, do bom mocismo norte-americano de após guerra, do auto-engano, do progressismo inocente e equivocado, representado nas imagens emblemáticas de famílias felizes de pequenas e idílicas cidades do meio oeste, na linha do seriado Papai sabe tudo.
Segundo Jameson, se há algum “realismo” nos anos 50, ele pode ser encontrado na representação da cultura de massa, o único tipo de arte que podia lidar com as realidades asfixiantes da era Eisenhower, a realidade das cidadezinhas dos Estados Unidos que se julgavam ameaçadas pelo comunismo mundial, pelos extraterrestres e, secundariamente, pela pobreza do Terceiro Mundo. Na época, Faulkner, Hemingway, os sulistas e os nova-iorquinos desviam-se do assunto “cidades do interior” por um caminho que as deixa fora da alta literatura.
Mas é por aí, por Holcomb no Kansas, que Truman Capote irá detectar a falha no sistema, graças à nova forma proposta – o romance jornalístico, com sua linguagem no registro aparente da cultura de massa. A sangue frio já sinaliza as mudanças da sociedade norte-americana pré-Vietnã, pré-movimentos hippie, feminista etc., quando então seus valores seriam totalmente questionados.
No entanto, Capote, o filme baseado no livro Capote, a biografy (1993), de Gerald Clarck, preferiu reduzir esse grande painel, bem como a importância do escritor e sua obra, a questões de decadência moral e profissional, bloqueio criativo e envolvimento emocional de Truman Capote, numa caracterização super-hiper-gay de Hoffman, com um dos assassinos. Como se dissessem: “Não acreditem em nada do que ele diz, não passa dum pobre viado alcoólatra e drogado”, na mesma linha “do pobre filha-da-puta” aplicada a Scott Fitzgerald. Malditos puritanos! Como se fosse possível ser cristão ignorando-se o ideal de igualdade e fraternidade que está no centro do cristianismo.
A diferença entre as duas sociedades é que a de 1960 se conhecia pela “falsa consciência”, a consciência envergonhada de suas injustiças, enquanto a de 2000 se conhece pela “consciência perversa”, que não só ignora a desigualdade social como quer mais é que você se foda.