O escritor russo Liev Tolstoi (1828-1910) cunhou a frase: “Se queres ser universal começa por pintar a tua aldeia”. Muitos pintaram, outros contaram ou então cantaram sua aldeia. E tantos mais continuam a seguir o mesmo conselho.
Recentemente tive uma conversa com meu tio, o que me leva, agora, a relatar um pouco do que era a minha aldeia. Não que eu queira tornar minha aldeia universal, mas que pelo menos sirva como um exemplo.
“Na época, nós fazíamos de tudo. Só não fizemos maldade”. Esta frase foi dita por ele, irmão mais novo de minha mãe, ao se referir ao passado, aos tempos em que sua família, inclusive minha mãe, vieram morar e desbravar Rolândia (PR). Eles moravam próximo a São Martinho, distrito de Rolândia, “aldeia” onde nasci, em 1950.
Conta meu tio que de Promissão (SP) a Rolândia a viagem durou quatro dias, viagem que, hoje, também por terra, é feita em algumas horas. Era tudo mata a ser derrubada, fazer as coivaras, queimar e depois plantar. Ele relembra que homens e mulheres trabalhavam em pé de igualdade, e que até as crianças também trabalhavam muito.
Recorda que as crianças tinham a liberdade limitada, pois tudo era floresta. Trabalhavam ao lado dos adultos e o pouco de liberdade que tinham era no trajeto entre buscar ou levar coisas emprestadas dos vizinhos. E o trajeto muitas vezes era distante. Tinham que caminhar por trilhas estreitas no meio da floresta.
Relata que, numa dessas “aventuras”, passou um dos seus maiores medos. Foi num final de dia, quando foi até uma venda próxima, a dois quilômetros de distância, buscar tripas para fazer linguiça.
Ao voltar, o sol já tinha se posto e o urutau começou a cantar, as sementes secas das árvores no chão faziam barulho ao serem pisadas e alguns macacos ruidosamente se manifestavam. Por mais valente (valentia de criança) que fosse, não teve alternativa a não ser ganhar coragem e sair correndo.
Diz que chegou em casa e, com toda a sua imaginação de criança, contou que uma onça tinha atacado um homem. Era o que imaginava pelos ruídos da floresta misturados, principalmente, pelo canto/grito/lamento do urutau. Os jovens de hoje não sabem o que é urutau, mas no Youtube podem ouvir o canto deste pássaro fantasma.
Clique aqui para ouvir o canto do urutau
O urutau é um pássaro notívago, chamado de pássaro fantasma, e seu canto é como uma lamúria, um grito de tristeza.
Conversando com meu tio, rememoramos duas coisas: o urutau, após pousar, confunde-se com um toco de pau ou galho seco; e seu canto é agourento, sinal de morte na família ou de gente próxima.
“Na época, nós fazíamos de tudo. Só não fizemos maldade”. De fato a frase é verdadeira para aquele momento, pois os pioneiros ou se ajudavam e faziam o bem um para o outro, ou a maioria fracassava. Fazer o bem era, também, ajudar na empreitada da derrubada da mata, a coivara, o plantio e a colheita. Tudo isso era o bem, como também era o bem caçar os animais, hoje extintos ou em extinção.
Na minha “aldeia”, mesmo sem maldade e na época predominando pequenas propriedades (agricultura familiar), a grande floresta rapidamente foi colocada abaixo. Restaram algumas reservas e as áreas que margeiam os rios (mata ciliar, chamadas de áreas de preservação permanente, as APPs).
Com isso, desapareceram os grandes animais, muitas espécies de vegetação e os índios da região. Sem maldade, espécies animais e vegetais foram extintas, fontes de água secaram.
Agora, em busca do lucro, um tipo de maldade, fazendeiros e parlamentares, identificados como ruralistas, querem destruir o Código Florestal, arcabouço legal que garante o mínimo de preservação.
Não basta, para eles, alterar a norma vigente (lei federal de número 4.771/65), mas também querem dar anistia a todos os devastadores da floresta. Tratam no seu projeto (substitutivo apresentado pelo deputado Aldo Rebelo, do PCdoB-SP) de anistiar aquele pequeno proprietário que, por desconhecimento ou necessidade de produção de alimento, derrubou a reserva legal e destruiu a APP. E anistiam também o grande fazendeiro, o criminoso que, às vezes até usando trabalho escravo, derrubou a floresta para ampliar seus lucros. Em nome dos pequenos agricultores, anistiam aqueles que incorreram de maneira contumaz no crime.
Em nome dos que fizeram sem maldade, os ruralistas querem perdoar os maldosos e querem continuar a “anistiar” a destruição da floresta. Eu, com o olho no passado, lá na minha distante “aldeia”, não posso aceitar. Não aceito porque, assim como Alberto Caeiro (O Guardador de Rebanhos), penso no que “há para além do rio da minha aldeia”.