Celso Lungaretti*
“E você que está me ouvindo
Quer saber o que está havendo
Com as flores do meu quintal?
O amor-perfeito, traindo
A sempre-viva, morrendo
E a rosa, cheirando mal”
(Chico Buarque, “Agora Falando Sério”)
Agora falando sério, o Brasil oficial está em processo de entropia: esfarela-se a olhos vistos.
Com intervalo de poucos meses, é sacudido por investigações que reduzem a imagem dos poderosos a frangalhos, ao exporem-nos publicamente, em horário nobre de TV, como responsáveis por uma coleção interminável de delitos, cumplicidades, iniqüidades e impropriedades.
A prisão de alguns deles é transformada em grande espetáculo de degradação pública, com direito a transmissão ao vivo e reprises ad nauseam na programação. As fotos ilustram capas de jornais e revistas. Telespectadores e leitores têm oportunidade para manifestar furibunda indignação e, en passant, desfrutar sofregamente seus minutinhos (ou meros segundos) de fama.
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A novela pode durar dias, semanas, até meses. Mas, invariavelmente, depois de tanto barulho, nada de realmente significativo acontece.
Os linchados no tribunal da opinião pública nem de longe recebem, dos tribunais verdadeiros, sentenças correspondentes à gravidade das acusações. Depois dos curtos períodos de prisões preventivas ou provisórias, contam com a sapiência de luminares do Direito e com a lerdeza da Justiça para permanecerem indefinidamente fora das grades.
Boa parte deles escapa ilesa, purgando seus pecados com um ostracismo temporário, à espera da readmissão no circulo do poder.
E não se tomam providência institucionais para evitar-se a repetição das mesmas práticas.
O último episódio foi, de longe, o mais patético de todos. Envolveu prende-e-solta de vilãos de carteirinha, escaramuças entre Poderes, rebelião de togados, acusações à imprensa e disponibilização irrestrita de quilométricas transcrições de escutas telefônicas.
Pior: o instituto do habeas corpus sofreu seu mais duro ataque desde os inglórios tempos da ditadura militar. Policiais e procuradores correram a anular o efeito de uma liminar do Supremo Tribunal Federal, conseguindo novo mandado de prisão em prazo recorde, o que evidenciou a existência de um contra-ataque previamente preparado para furtarem-se ao cumprimento da decisão da mais alta corte do País.
E o ministro da Justiça não teve sequer o bom-senso de aparentar isenção: avalizou e justificou esse subterfúgio inconseqüente.
O que começou como escalada de arbitrariedades, logo evidenciou ser apenas uma comédia de erros, com final de pastelão: ao perceber que a metralhadora giratória não abateria apenas os tucanos que ensaiam vôo eleitoral, atingindo também um pavão do PT e seu próprio governo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tratou de prover panos quentes, ao reconciliar ministro da Justiça e presidente do STF, com direito a posarem os três, sorridentes, para as câmaras no Palácio do Planalto.
E, numa alegada mas implausível “coincidência”, o delegado de nome esquisito foi, simultaneamente, afastado do caso, sinalizando que a Operação Santiagraha marcha para o esvaziamento e o esquecimento.
O saldo foi o pior possível: Executivo e Judiciário saem com a imagem bem chamuscada, enquanto o Legislativo carrega o estigma da omissão, pois seus integrantes optaram por enterrar a cabeça na areia, como avestruzes, com medo dos danos que as investigações poderiam causar a eles próprios.
Já o Brasil real continuou funcionando como quer e manda o verdadeiro Poder: o econômico.
Cada vez mais, salta aos olhos que a esfera da política oficial esgota-se em encenações canhestras e só tem poder de decisão sobre o secundário. Gerencia a ramificação local do capitalismo globalizado, fornece ilusões & catarse ao povo… e nada mais.
Last but not least, parte da esquerda brasileira embarcou levianamente nessa canoa furada, conformando-se com o papel de peão no tabuleiro do sistema.
Tendo esquecido ou desaprendido o marxismo que ainda diz professar, envolveu-se numa empreitada que, quanto muito, atenuaria mazelas do capitalismo, sem alterar suas características fundamentais de promover a desigualdade entre os homens, desperdiçar o potencial ora existente para assegurar-se uma existência digna a cada brasileiro e dilapidar criminosamente os recursos naturais essenciais à própria sobrevivência da espécie humana.
Ao tomar partido nessa guerra de lama, enlameia-se aos olhos do cidadão comum, deixando de personificar a esperança num Brasil bem diferente. Além disto, ajuda a disseminar a sensação de que a política é caso perdido, conveniente para os que querem manter o status quo, mas terrível para quem se propõe a mudar o mundo.
Se quiser conquistar corações e mentes, terá de resgatar as bandeiras perdidas, voltando a identificar-se com o “reino da liberdade, para além da necessidade” prometido por Marx.
Hoje está muito mais para Robespierre, prometendo vingança e cabeças cortadas.
Artigo publicado em 17/07/2008. Última atualização em 12/08/2008.
*Celso Lungaretti, 56 anos, é jornalista em São Paulo, com longa atuação em redações e na área de comunicação corporativa, e escritor. Escreveu Náufrago da utopia (Geração Editorial, 2005). Mais dele em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/.
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