Durante a ditadura militar, Chico Buarque sempre usou a sua fina ironia para protestar. Muitas de suas músicas foram cantadas e interpretadas conforme a sensibilidade de cada intérprete. Também foram ouvidas e entendidas de acordo com a capacidade da compreensão histórica, política, conjuntural e cultural de quem ouvia.
São poucos os que, usando da ironia e do humor, conseguem fazer com que as pessoas compreendam a situação que vivem ou que as leve a pensar e a buscar a resposta ao que acabou de ouvir ou ler. Chico tem esta capacidade na poesia, na música e na literatura.
Entre as muitas poesias, apesar de que já vi Chico negando ser poeta, de fina ironia e de protesto está “Acorda Amor”:
Acorda, amor
Eu tive um pesadelo agora
Sonhei que tinha gente lá fora
Batendo no portão, que aflição
Era a dura, numa muito escura viatura
Minha nossa santa criatura
Chame, chame, chame lá
Chame, chame o ladrão, chame o ladrão.
A estrofe que reproduzo traduz o medo que os defensores da democracia, dos direitos humanos e principalmente os pobres e pretos das periferias tinham da polícia na época da ditadura militar.
No momento, vivemos no Brasil um Estado de exceção e o medo da polícia, que nunca deixou de existir em setores da população, está crescendo entre a população das periferias das cidades. Todos os dias há nas redes sociais histórias de abuso de autoridade policial, de procuradores e de juízes.
Sempre há aquelas pessoas que, ao ler minha condenação a estes abusos, vai contestar dizendo que estou defendendo bandido. Não, não estou. Por pior que seja o bandido, não merece ser abusado. Merece ser preso, investigado, julgado e, quando provado o crime, condenado. Se não for assim, o agente público primeiro abusa do considerado bandido e, num crescente, passa a abusar de todos.
PublicidadeO artigo do Eduardo Guimarães “PM-SC dá choque em criança de colo e ameaça quem criticou” me fez lembrar a música “Acorda Amor” e fazer estes comentários.
O relato, mais o vídeo exposto sobre o fato ocorrido na tarde de 22 de janeiro último, em Pomerode (SC), mostra um dos “atos de violência policial mais espantosos que já vi”, afirma Guimarães. Como cidadão e como pediatra, assino embaixo dessa afirmação.
Acorda amor
Não é mais pesadelo nada
Tem gente já no vão de escada
Fazendo confusão, que aflição
São os homens.
“São os homens”, essa expressão sempre foi usada quando se referia à polícia. O homem assediado moral, psicológica e fisicamente, junto ao seu filho, pela PM de SC preferia o pesadelo a ser protegido pelos “homens”.
Mas os “homens” da PM de SC não se curvam às evidências do vídeo e do exame de bafômetro, que mostrou que o cidadão com o filho no colo não tinha feito uso de bebida alcoólica, e ameaçam: “(…) Será solicitada a instauração de procedimento investigativo para apuração dos fatos e das responsabilidades, inclusive dos eventuais comentários ofensivos e indecorosos que foram proferidos nas redes sociais de forma injusta e sem conhecimento de causa”.
Apesar de correr o risco de ser processada, a PM mente.
Neste artigo uso o mesmo título que Chico usou no seu poema e música, “Acorda Amor”, e o faço em forma de grito “ACOOOOOORDA AMOOOOR” com o objetivo de acordar o amor que está adormecido no peito de muita gente.
Acorda amor e ganhe vida, precisamos derrotar o fascismo que dia a dia está se fazendo presente na vida das pessoas. O ato violento dos policiais de Santa Catarina é anticristão, desumano e cheio de ódio. É um ato de repercussão futura: como aquela criança vai superar o trauma de ser submetida a tamanha violência psicológica e física. Como, no futuro, esta criança reagirá à violência a que seu pai foi submetido?
A boa notícia de 2017 é que Chico Buarque venceu o prêmio literário francês Roger Caillois, na categoria Literatura Latino-Americana. Reconhecimento que vem em boa e merecida hora, quando o fascismo, no Brasil liderado pelos coxinhas, tem vitimado inclusive este grande brasileiro.