O que eu imaginava extinto voltou a ocorrer, principalmente nos dois últimos anos: ver pessoas (homens, mulheres e crianças) remexendo o lixo em busca de comida.
Costumeiramente vejo, principalmente aos domingos, talvez por ficar em casa pela manhã, uma ou mais pessoas remexendo o lixo, logo cedo, em busca do que comer.
Todas as vezes que vejo isto sou tomado de indignação.
Lógico que, ao ler a frase acima, vai ter um idiota perguntando: “e por que você não dá de comer para essas pessoas?”.
Digo idiota porque só quem pensa que a solução passa pela filantropia individual é idiota ou um completo alienado. Não sei se há muita diferença de um para o outro.
A resposta para acabar com a fome passa pelas políticas públicas e não pela pura e simples filantropia. A filantropia presta ação emergencial, mas não resolve o problema.
Domingo, 14 de janeiro, logo cedo vi aqui na frente de casa um cidadão, jovem (menos de 40 anos), com boa musculatura, parecia ter feito halterofilismo, revirando o lixo em busca de comida. Sei que buscava comida porque recolheu alguma coisa do lixo e começou a comer. Uma parte do que encontrou comeu, outra guardou. Saiu claudicando e remexendo as lixeiras aqui da rua: o que encontrava de comida comia, ou separava para levar.
Essa triste cena me trouxe à mente muitas passagens que já li, vi ou ouvi. Dos que li, me trouxe o poema “O Bicho” de Manuel Bandeira, os livros A pele, de Curzio Malaparte, e Geopolítica da Fome e Geografia da Fome, de Josué de Castro.
“O Bicho” de Manuel Bandeira é muito representativo:
Vi ontem um bicho / Na imundície do pátio / Catando comida entre os detritos. // Quando achava alguma coisa, / Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade. // O bicho não era um cão, / Não era um gato, / Não era um rato. // O bicho, meu Deus, era um homem.
Comportamento igual tinha ‘o bicho’ aqui da frente de casa.
Muitos descreveram a fome, seja de maneira poética, romanceada, ficcional, traumática ou realista. Entre eles, Curzio Malaparte.
Em A pele, que li há mais de 30 anos, e que também virou filme, Malaparte faz um relato do que é o pós-guerra na Itália, de como o ser humano se comportava para sobreviver. Se, durante a guerra, luta com bravura e dignidade pela vida, no pós-guerra, para sobreviver, se vende, trapaceia e vende até os filhos, para servir de objetos sexuais. O ser humano deixa de ser humano, deixa de ser um bicho que defende o filhote e/ou a manada e passa a ser a pior das coisas.
Digo a pior das coisas porque perde as características do humanismo. Vira uma coisa querendo sobreviver.
Em seu Geopolítica da Fome, Josué de Castro escreve que, na “luta pela obtenção do pão-nosso-de-cada-dia”, o homem, “este animal pretensiosamente superior”, não obteve uma vitória decisiva na luta pela própria subsistência.
Como define Josué de Castro, este animal que é pretensiosamente superior, não o é porque é egoísta e individualista. Luta pela sobrevivência de maneira individual, disputando privilégios com seu semelhante e, se preciso, para manter os privilégios ou obter outros, mata o seu semelhante.
Quando no Brasil passou-se a construir um mínimo de igualdades de direitos, como o de comer, foi construído um golpe. Quando no horizonte foi visualizada a possibilidade de todos e todas, independentemente da classe social, terem os mesmos direitos, sob a égide do combate à corrupção, os maiores corruptos da história do país deram um golpe de Estado.
Esses homens/bichos/coisas são vítimas desses golpistas. São vítimas do capitalismo, onde impera a lei do individualismo e do egoísmo. A lei do ter tudo a qualquer custo, mesmo que parte da população passe fome.
Até o golpe, havia políticas públicas ativas de combate à fome. Não há mais. Em menos de dois anos, Temer, seus apoiadores (PSDB, PMDB, PP, PTB, Solidariedade, PPS, PSC, PSL, PSD, et caterva) e os golpistas, entre quais os batedores de panelas, os que se vestiram de verde e amarelo, alguns juízes, e vários procuradores e policiais federais destruíram o Brasil e construíram a volta da fome, que estava de partida, entre os brasileiros.
Claro que não atuaram sozinhos, tiveram o apoio da mídia (Rede Globo) e do capital internacional.
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