Regina Beatriz Tavares da Silva*
Um homem e duas mulheres declararam em cartório a existência de união estável entre eles, em escritura lavrada no Tabelionato de Tupã (São Paulo), após terem procurado diversos tabeliães de notas, que se recusaram a fazê-lo. Constou dessa escritura: “Os declarantes, diante da lacuna legal no reconhecimento desse modelo de união afetiva múltipla e simultânea, intentam estabelecer as regras para garantia de seus direitos e deveres, pretendendo vê-las reconhecidas e respeitadas social, econômica e juridicamente, em caso de questionamentos ou litígios surgidos entre si ou com terceiros, tendo por base os princípios constitucionais da liberdade, dignidade e igualdade.”
Como argumentos a favor da chamada união “poliafetiva”, citou-se tratar de “união estável”, o que afastaria os entraves legais existentes no casamento, bem como que tal conduta estaria de acordo com o direito à liberdade e à dignidade dos outorgantes e respectivamente outorgados.
Surge o seguinte questionamento central: por se tratar de um fato da vida real, deve, necessariamente, ser reconhecida como válida e eficaz a escritura que reconhece tal situação? A resposta, adianta-se, é negativa.
No Brasil, o tema, em ficção, já foi versado no romance Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado. Na minissérie Rabo de Saia, o personagem Quequé levava sua vida de polígamo sem problemas, até as mulheres descobrirem a existência uma da outra — do que decorreu a sua prisão. Na novela Avenida Brasil, o personagem Cadinho mantém um relacionamento com três mulheres ao mesmo tempo, com divisão do seu tempo entre as três parceiras, o que, face ao natural desgaste dessa relação, culmina com grave declínio em sua vida pessoal e profissional.
De volta à realidade, o trio de Tupã buscou o reconhecimento notarial de suposta união estável entre um homem e duas mulheres, com efeitos de entidade familiar, regime da comunhão parcial de bens, dever de assistência, dever de lealdade (ou fidelidade) e administração dos bens pelo marido. Entretanto, importante destacar que tal trio discrepa a não mais poder da realidade brasileira.
Inicialmente deve ser notada a sedução que reside na utilização de expressões como “poliamor” ou “poliafeto”. Não se nega o agradável sentimento que decorre da expressão afeto. Contudo, a expressão poliafeto é um engodo, um estelionato jurídico, na medida em que, por meio de sua utilização, procura-se validar relacionamentos com formação poligâmica.
Com efeito, não há como se admitir, observados os contornos sociais e jurídicos brasileiros, que o casamento e a união estável deixaram de ser monogâmicos. Em países africanos, como na Tanzânia e em Guiné, ou, ainda, em países de religião muçulmana, há a aceitação da poligamia, mas seus costumes são muito diversos dos brasileiros.
A escritura lavrada em Tupã de nada servirá a essas três pessoas. É inútil porque não produz os efeitos almejados, uma vez que a Constituição Federal (CF), a lei maior do ordenamento jurídico nacional, atribui à união estável a natureza monogâmica, formada por um homem ou uma mulher e uma segunda pessoa (CF, artigo 226, § 3º).
O reconhecimento notarial afronta a dignidade das três pessoas envolvidas (CF, artigo 1º, III), servindo como elemento de destruição da família, que é considerada elemento basilar da sociedade brasileira (CF, artigo 226, caput).
A bigamia constitui crime, tipificada como o novo casamento realizado por pessoa casada (Código Penal, artigo 235). Logo, se o direito brasileiro não tolera o casamento bígamo, por semelhante razão — embora sem a tipificação criminal porque o diploma penal é anterior à consideração constitucional da união estável — não se admite entidade familiar formada por três ou mais pessoas.
A escritura do trio não tem eficácia jurídica, viola os mais básicos princípios familiares, as regras constitucionais sobre família, a dignidade da pessoa humana e as leis civis, assim como contraria a moral e os costumes da nação brasileira.
Até mesmo em termos obrigacionais entre os componentes do trio, a escritura não tem maior valor: se um desses membros contribuir para que outro compre um bem imóvel ou móvel e não vier a constar expressamente como condômino nessa aquisição patrimonial, terá de fazer prova em juízo da sociedade de fato, de sua contribuição em capital ou trabalho para essa compra.
Não parece possível utilizar a referida escritura perante terceiros, entes públicos ou privados, uma vez que estes não têm obrigação legal de estender eventual benefício de entidade familiar à união poligâmica.
Com efeito, lembremo-nos de que o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça têm o entendimento pacífico de que poligamia não gera efeitos de direito de família, seja em caso de amantes escondidos ou de amantes conhecidos e consentidos.
*Doutora em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP, presidente da Comissão de Direito de Família do IASP e advogada