Fundada em algumas reflexões do economista argentino Jorge Beinstein (publicadas originalmente em http://resistir.info), pode-se observar que os grandes movimentos geopolíticos atuais propagam-se simultâneamente em quatro direções: declínio do império americano, retorno à ênfase militarista, transformações periféricas e insurreição global.
Desde o final do século XVIII, a história do capitalismo gira em torno do domínio, primeiro inglês e depois norte-americano. Capitalismo mundial, imperialismo e predomínio anglo-americano constituem um só fenômeno, agora decadente. A articulação sistêmica do capitalismo surge historicamente indissociável de um articulador imperial, mas num futuro previsível não aparece nenhum novo imperialismo global ascendente; em consequência, o planeta neoliberal vai perdendo uma peça decisiva do seu processo de reprodução. UE e Japão tornaram-se tão decadentes quanto os EUA. E a China, que baseou a sua espetacular expansão numa grande ofensiva exportadora para os mercados, agora declina na proporção dessas três potências centrais.
O capitalismo vai ficando à deriva a menos que, por algum exercício de futurologia, seja detectado algum tipo de mão invisível universal (e burguesa) capaz de impor a ordem (monetária, comercial, político-militar etc.). Infelizmente, de acordo com a teoria econômica também liberal neste caso estaríamos extrapolando ao nível da humanidade futura a referência à mão invisível (dos mercados?) posto esta ser inexistente. Segundo o autor, o declínio da maior civilização jamais conhecida na história humana apresenta vários cenários futuros: alternativas de auto-destruição e de regeneração, de genocídio e de solidariedade, de desastre ecológico e de reconciliação do homem com seu meio ambiente: Estamos retomando um velho debate sobre alternativas interrompido pela euforia neoliberal; a crise rompe o bloqueio e nos permite pensar o futuro.
O século XXI assinala um paradoxo crucial: o capitalismo assumiu uma dimensão global, mas iniciou igualmente o seu declínio. E tal fato já foi assinalado por vários autores, inclusive o nosso José Luís Fiori. Por outro lado, cem anos de revoluções e contra-revoluções periféricas produziram grandes mudanças culturais: agora na periferia (completamente pós-moderna, isto é, completamente subdesenvolvida) existe um enorme potencial de autonomia nas classes baixas. Aqui se apresenta o que poderíamos definir como património histórico democrático forjado ao longo do século XX.
Os povos periféricos construíram sindicatos, organizações camponesas, participaram em votações de todo o tipo, fizeram revoluções, reformas democratizantes; na maior parte das vezes fracassaram. Tudo isso forma parte da sua memória, não desapareceu; pelo contrário, é experiência acumulada, processada em geral de maneira subterrânea, invisível aos observadores superficiais. Isso foi reforçado pela própria modernização que, por exemplo, lhes fornece instrumentos, como a internet, que permitem intercambiar informações, socializar reflexões. Finalmente, a decadência geral do sistema, o possível começo do fim da sua hegemonia cultural, abre um gigantesco espaço para a criatividade dos oprimidos.
A guerra no Oriente Médio engendrou um imenso pântano geopolítico do qual os ocidentais (EUA e países da Otan) não sabem como sair; consolidou e estendeu espaços de rebelião e autonomia cuja contenção é cada dia mais difícil, situação perante a qual tudo o que o Império faz é redobrar a violência militar. A Coréia do Norte não pôde ser dobrada, nem o Irã, a resistência palestina segue de pé e Israel, pela primeira vez na sua história, sofreu uma derrota militar no sul do Líbano; a guerra do Iraque não pôde ser ganha pelos Estados Unidos, o que os coloca ali numa situação que conduz à perda do poder nesse país: a Síndrome de Vietnam se generaliza no mundo todo para os EUA.
Beinstein também é preciso ao diagnosticar a situação no Third World:
No outro extremo da periferia, na América Latina, o despertar popular transcende os governos progressistas e deteriora estrategicamente as poucas oligarquias direitistas que ainda controlam o poder político. O projeto estadunidense de restauração de ‘governos amigos’ tropeça num escolho fundamental: a profunda degradação das elites aliadas, sua incapacidade para governar em vários dos países candidatos à viragem para a direita, sendo que o Império não pode (nem tem condições) de deter ou desacelerar a sua ofensiva, à espera de melhores contextos políticos.
O ritmo da sua crise sobredetermina a sua estratégia regional; em última instância, isto não é completamente diferente da situação na Ásia onde a dinâmica imperial combina a sofisticação e a variedade de técnicas e estruturas operativas disponíveis com um comportamento absolutamente cruel. Se observarmos o conjunto da periferia atual a partir do longo prazo histórico, vemos um poder imperial desorientado enfrentando uma onda gigantesca e plural de povos submersos desde o Afeganistão à Bolívia, da Colômbia às Filipinas, expressão da crise da modernidade subdesenvolvida. É o começo de um despertar popular muito superior ao do século XX.
Em meio a estas tensões surge um leque de mutações periféricas fundadas na possibilidade de gerar uma desconexão encabeçada pelas nações chamadas emergentes; o que é no fundo uma fantasia que não toma em consideração o fato decisivo de que todas as ‘emergências’ (as da Rússia, China, Brasil, Índia, etc) se apoiam na sua inserção nos mercados dos países ricos. Se esses estados que vêm praticando neokeynesianismos mais ou menos audazes, compensando o esfriamento global, quisessem aprofundar esses impulsos de mercado interno e/ou interperiféricos, se encontrariam, cedo ou tarde, com as barreiras sociais dos seus próprios sistemas económicos, com os seus próprios capitalismos reais e, em especial, com os interesses das suas burguesias financeirizadas, transnacionalizadas e apátridas.
Nos anos 1990, os neoliberais de plantão nos diziam que a globalização constituía ‘um fenômeno irreversível’, que o capitalismo havia adquirido uma dimensão planetária que arrasava com todos os obstáculos nacionais ou locais. Não se davam conta de que essa irreversibilidade, transformada pouco depois em decadência global do sistema, abria as portas a um sujeito inesperado: a insurreição global do século XXI; o tempo (a marcha da crise) joga a seu favor. O império e seus aliados diretos e indiretos quiseram fazê-la abortar, começando por tentar apagar a sua dimensão universal, tratando midiáticamente de transformá-la (fragmentá-la) numa coleção de resíduos locais sem futuro.
Mas essas resistências residuais possuem uma vitalidade surpreendente, se reproduzem, sobrevivendo a todas as tentativas de extermínio e quando focalizamos o percurso futuro do declínio civilizacional em curso, a profunda degradação do mundo neoconservador, o seu avançar para a barbárie antecipando crimes ainda maiores, então a globalização da insurreição popular aparece como o caminho mais óbvio para a emancipação das maiorias submersas o que implica em sua única possibilidade de sobrevivência digna.