Márcia Denser
Lendo no blog do Miguel do Rosário a respeito do novo cinismo e a ausência absoluta de espírito solidário dos jovens das classes médias urbanas, filhotes do espírito neoliberal (sobretudo no Rio e em São Paulo), sinto que, no limite, eles estão em sintonia com as novas (e tão velhas) concepções históricas das guerras como um negócio. Ou das guerras como permanentes – “guerra é paz”, já escrevia George Orwell em 1984, um livro de 1934. A crueldade, a indiferença, o egoísmo, a injustiça e assemelhados não são exatamente uma novidade no mundo, tampouco burrice, alienação e hipocrisia. Já grandeza ou dignidade continuam escassíssimas. Sem contar que o Brasil é um país com poucas guerras em seu passado histórico, o que torna tais cínicas posições neoliberais especialmente alienadas.
Autor do livro O negócio da guerra (ainda não traduzido no Brasil), o pesquisador italiano Dario Azzelini argumenta que “a guerra não é mais para instalar outro modelo econômico, ela é o modelo”. Em entrevista ao jornal argentino Página 12, divulgada esta semana em
www.cartamaior.com.br, ele traça um painel bastante preciso de como a idéia da guerra se transformou sob a lógica neoliberal: “O sentido da guerra mudou. Tradicionalmente, era para trocar as elites e o controle das economias, ou introduzir outro modelo de domínio econômico ou político. Agora, em muitos casos, as guerras são permanentes. Não se faz a guerra para implementar outro modelo econômico, mas a guerra mesmo é o mecanismo de lucros”.
No debate acadêmico e político, a expressão “novas guerras” foi introduzida para denominar o fato de que mais e mais guerras não se dão mais entre países, mas no interior dos países (a guerra contra os civis!) ou, pelo menos, entre um Exército regular e um irregular. Não é que tenham acabado as guerras entre Estados. Ao contrário, na última década, houve aumento. Mas elas mudaram, e a porcentagem das guerras irregulares em comparação com as regulares está crescendo. Isso obedece à lógica neoliberal de aumentar lucros. Agora, em muitos casos, as guerras são permanentes.
Por exemplo, os lucros da Colômbia se devem ao fato de ser um país em guerra permanente há anos. Aliás, durante os últimos 20 anos, a passagem da pequena e média agricultura para a agroindústria se fez com uma guerra. Não fosse assim, não teria sido possível expropriar as terras de milhões de camponeses e fazer “uma reforma agrária ao contrário”, na qual os latifundiários e paramilitares se apropriaram de 6 milhões de hectares de terra. Naomi Klein já discorreu extensamente sobre o “Plano Marshall ao contrário” implantado pelo governo Bush no Iraque.
Segundo Azzelini, as primeiras companhias militares privadas (CMPs) nasceram imediatamente depois da II Guerra Mundial, porque o Exército dos Estados Unidos tinha tão grande capacidade de mobilização que passou a privatizar parte do transporte. Porém, o verdadeiro boom dessas empresas começou em fins dos anos 80 e foi reforçado de forma maciça nos 90. Na primeira guerra dos Estados Unidos contra o Iraque, a relação entre os empregados das CMPs e os soldados regulares era de 1 para 100. No Afeganistão, de 1 para 50. Agora, no Irã, há 180 mil empregados das CMPs, segundo dados do próprio Exército norte-americano.
Essas companhias exercem dezenas de atividades. O uso de armas sofisticadas (como aviões não tripulados, radares ou mísseis de navios estadunidenses) na primeira onda de ataques ao Iraque foi realizado por especialistas de empresas privadas. Distribuem a correspondência, cozinham, lavam a roupa dos soldados, montam os acampamentos militares, as prisões. No caso da prisão de Abu Ghraib, houve julgamentos e investigações contra menos de dez soldados dos Estados Unidos, quando deveria haver muitos mais implicados. A verdade é que a prisão era administrada em todas as suas funções por duas empresas privadas: Caci e Titan.
As vantagens da terceirização para as CMPs? Como seus empregados são civis, não podem ser julgados pela Justiça militar. Ao mesmo tempo, em seus contratos lhes é assegurado que não podem ser submetidos à Justiça civil dos países em que atuam. Praticamente se criou um campo de impunidade. E a única via para fazer algo contra tais crimes é iniciar processos nos Estados Unidos contra as empresas. E quantas vítimas têm a possibilidade de fazer isso? Quase nenhuma.
Na entrevista, Azzelini observa sintomaticamente: “Legaliza-se todo o negócio dos mercenários com esse marco de impunidade. Além disso, terceiriza-se a responsabilidade. Milles Frechette, ex-embaixador dos Estados Unidos na Colômbia, disse que é muito cômodo trabalhar com essas empresas porque se morrem, não são soldados norte-americanos e, se fazem algo errado, a responsabilidade tampouco recai sobre os Estados Unidos. É a possibilidade de os EUA intervirem militarmente em outros países sem que apareçam como tais, porque não são seus soldados que atuam. Desde o Vietnã, sabe-se o impacto público que causa a imagem de soldados mortos que regressam cobertos pela bandeira ianque, mas isso não acontece se morre o empregado de uma empresa privada. Não causa indignação pública, porque é como se morresse um empregado da IBM em Cingapura. Ninguém se importa com isso.”
Realmente ninguém se importa. É o que eu chamaria de “privatização da consciência”: uma espécie de salvo-conduto para os jovens neoliberais exercerem seu próprio cinismo à vontade. Da mesma forma que, cinicamente, ninguém irá lamentá-los no futuro.