Antônio Carlos de Medeiros *
Já há mais de um ano, a política brasileira fecunda e é fecundada por um processo entrópico de causação circular. A fragilidade crescente do Centro de Poder desencadeia vestígios marcantes de anomia social, que retroalimenta a fragilidade e instabilidade do Centro de Poder.
O movimento de causação circular esgarça e desorganiza a coalizão de poder politicamente dominante – vale dizer, o bloco no poder. O ciclo político entra em ocaso e vai retirando da política o exercício de sua função primordial de articulação e agregação de interesses. No caldeirão acelerado da causação circular, aprofunda-se o horizonte de entropia, exacerba-se a anomia. Tudo temperado por uma vertigem generalizada no conjunto das lideranças políticas relevantes. Resultando em ausência de capacidade convocatória para o diálogo da busca do horizonte.
A resultante (maligna) da conjunção de crises – política, econômica, social, cultural e de legitimidade – é o desespero, o pessimismo e a ausência de expectativas, no caldo de cultura da recessão, da depressão, da involução. Da desgraça surgirá a fênix? Quando é que será pressionado o “botão do pânico” das crises para sacolejar as lideranças na direção da responsabilidade com o futuro do país? Quando é que o “quanto pior, pior” vencerá o “quanto pior, melhor”?
Os desafios se amplificam e culminam também numa gigantesca crise fiscal de natureza estrutural. Luiz Carlos Azedo foi cirúrgico: “O Estado gastou mais do que a sociedade suportava, a sociedade gastou mais do que a riqueza que criava – agora chegou a hora da verdade, só a política pode achar uma saída, que implica em fazer duras escolhas”. Há um conjunto de privilégios adquiridos. Ampliando o inchaço do Leviatã. Que agora precisa ser domado. Para conter a insustentabilidade fiscal e a falência múltipla dos órgãos do Estado.
Já é cabal a solidez da democracia no Brasil. As algaravias do ambiente político conflagrado e tensionado não balançam a democracia brasileira. Lá atrás, a “Nova República” pactuou e construiu uma restauração do Estado Nacional brasileiro que passou pela Constituição de 1988 e por um ciclo que institucionalizou conquistas democráticas, estabilidade econômica e inclusão social.
A democracia deu passagem à organização, manifestação, circunscrição e aceitação de demandas e interesses dos mais diversos setores sociais, que geraram direitos legítimos, mas também privilégios adquiridos. Neste específico sentido, a democracia, com a explosão de demandas e pressões de uma miríade de grupos de interesses, parece responsável legítima pelo inchaço do Estado e do governo. O efeito perverso foi a crise fiscal e a escassez.
A escassez, por sua vez, gera uma contradição em termos, uma disfuncionalidade: a democracia sobrecarregou-se de obrigações e distorceu-se em nome do atendimento de interesses específicos, ao mesmo tempo em que diminuiu a capacidade de entrega do Estado e do governo. O Estado sobrecarregado deslegitimou a ordem restaurada com a Nova República. Fim de ciclo. A explosão da dívida pública não permite mais o modelo de crescimento com endividamento e a estratégia de remar e pedalar para a frente. A bicicleta caiu. O Estado não cabe no PIB. Com repercussões negativas para os jovens de hoje, gerações futuras.
E daí? Daí que está na hora de mudar de Agenda. Para estancar a recessão econômica, a entropia política, a anomia social, e a possibilidade de exacerbação da tensão social já agora, passado o Carnaval, mirando as manifestações de 13 de março e depois. Mudar a Agenda e preparar nova perspectiva de nova restauração histórica, trinta anos depois da Nova República.
A presidente Dilma parece ter compreendido, ainda timidamente, mas antes tarde do que nunca, que é preciso esboçar uma pauta. De pronto, está claro para a maioria dos atores relevantes do espectro político que a nova Agenda vai precisar conter fortes matizes de corte liberal. No Brasil, assim como está acontecendo no mundo ocidental, a expansão do Estado “big brother” reduziu liberdades; cedeu espaço para a proliferação de interesses específicos que viraram privilégios adquiridos; e produziu promessas e expectativas que não podem ser cumpridas. O Leviatã contém contradições paralisantes que produzem o vírus da deslegitimação do Estado e dos governos e da própria ameaça à democracia. É preciso quebrar esse círculo vicioso. Outros países passaram e estão passando por processos históricos semelhantes.
Historicamente uma nação adolescente, o Brasil precisa passar por uma restauração que advenha de novas escolhas, de novos caminhos históricos, para além da algaravia de Brasília. Para isso, a presidente Dilma precisa ainda tomar a humilde iniciativa de dialogar para construir capacidade convocatória na direção da construção de uma Agenda Nacional. A retomada do chamado Conselhão foi uma boa iniciativa, mas está longe de ser suficiente para a construção de capacidade convocatória para a presidente – e para a efetiva ação de dialogar com as forças políticas, sociais e empresariais que poderão configurar um novo bloco de poder.
É este o nome do jogo: novo bloco de poder. Na perspectiva de 2018, e depois, há que se construir politicamente, em torno de uma pauta e agenda, uma transição para 2018 e depois. A recente inflexão do PSDB, agora com disposição para colaborar com a pauta fiscal, colabora para essa construção. Mas há que se iniciar por ganhar capacidade convocatória. Os diálogos para a agenda da transição não podem se restringir ao campo da base congressual e parlamentar. Têm que ir além, para o campo da sociedade civil e das lideranças sociais e empresariais relevantes.
Lideranças (ainda) relevantes como Fernando Henrique Cardoso, Lula e Marina Silva já sinalizaram que atenderiam a uma convocação para fazer uma opção pelo país, em torno de uma Agenda mínima. Por que não começar por aí? Atitudes simbólicas que iriam gerando vontades e sinergias, seguidas por diálogos com lideranças congressuais, partidárias, empresariais e sociais. Sinergias que iriam revertendo as expectativas e ajudando a soldar uma Agenda de transição para 2018. E um novo bloco de poder.
O Brasil não pode mais esperar a corda arrebentar. O país não pode ser refém das disputas pelo impeachment. Com ou sem impeachment, há que se caminhar para reverter expectativas. Neste momento, com sentido de urgência, a iniciativa tem que ser da presidente, mas é preciso fazer isso com capacidade convocatória construída politicamente. Ou seja, ela vai ter que abdicar de parcelas de poder para adquirir essa capacidade convocatória. Abdicar no sentido de compartilhar poder. Compartilhar poder com o poder político e com o bloco de poder. Um governo de composição.
O gesto, forte, de abdicar e compartilhar não é um ponto de partida. É um ponto de chegada e convergência, no processo de construção e negociação de uma agenda mínima de transição. Esse compartilhamento criaria capital simbólico, capital político e capital social para reverter expectativas e fazer entregas à sociedade. Com um ministério de alto nível e com apoios federativos.
Hoje, o governo federal tem forte influência, no processo decisório, de anéis burocráticos, para usar expressão cunhada pelo então sociólogo Fernando Henrique Cardoso em suas análises sobre os Estados autoritários e sobre o regime militar brasileiro de 1964. A força de anéis burocráticos, de forte componente tecnocrático, favorece um padrão fragmentado e moroso de tomada de decisões, restringindo drasticamente a capacidade de entrega do Estado brasileiro. O inchaço do Leviatã acabou tendo o efeito perverso de fortalecer a burocracia e a tecnocracia, mais do que necessário.
O roteiro da transição para 2018, com agenda mínima e poder compartilhado, precisa ser acelerado. Uma transição para uma nova restauração do Estado brasileiro. Felizmente, as forças políticas parecem ter começado a compreender que quanto pior, pior.
* PhD em Ciência Política pela London School of Economics and Political Science.