Brasil, país do futuro, a renomada obra do judeu austríaco refugiado dos nazistas no Brasil, Stefan Zweig, inseriu-se com força no imaginário coletivo nacional. Em 1941, quando do seu lançamento, já provocava polêmicas, pois seu conteúdo ufanista sobre nosso país foi acusado de ser conivente com a ditadura do Estado Novo. Ao longo de décadas, foi lembrado e citado, ora com orgulho nacionalista, ora com ironia.
Zweig via com otimismo as possibilidades de o Brasil se desenvolver econômica e socialmente. Pacifista, uma coisa o mobilizava mais que tudo: a possibilidade de um país se desenvolver sem guerras. “Como poderá conseguir-se no mundo viverem os entes humanos pacificamente uns ao lado dos outros, não obstante todas as diferenças de raças, classes, pigmentos, crenças e opiniões?”, se perguntava Zweig. E ele mesmo respondia: “O Brasil resolveu-o duma maneira que, na minha opinião, requer não só a atenção, mas também a admiração do mundo”.
Já Gilberto Freyre, em Casa-Grande & Senzala, em 1933, já havia cunhado sua visão sobre a democracia racial nacional e as relações harmônicas interétnicas que mitigariam a influência social do passado da escravidão no Brasil e que, segundo ele fora menos segregadora que a formação social norte-americana.
Essas visões foram formando uma imagem auto benevolente sobre nossa sociedade, construindo um projeto utópico de um Brasil pacífico, colaborativo, capaz de construir uma Nação tolerante, desenvolvida e civilizada, distante da realidade de um País marcado pela violência e crueldade do racismo, da desigualdade social e do machismo dominantes na sociedade brasileira de outrora e de hoje.
Após o terror da ditadura militar, o Brasil, no entanto, despertou na redemocratização, redesenhando na Constituinte de 1988 essa visão otimista. Expressava um pacto nacional em torno de um Estado que promovesse o bem-estar e a justiça social.
As forças conservadoras – a direita, intimidada pelas lembranças ainda recentes da herança nefasta do regime ditatorial – demorou a se articular, e quando o fez, travestida de “Centrão”, retroagiu algumas conquistas, mas foi obrigada a respeitar o cerne de uma concepção resumida por Ulysses Guimarães como a Constituição Cidadã.
O que estamos vivendo no centenário de Ulysses, aos 28 anos da Constituição, parece ser o avesso de tudo isso. Não há mais projeto nacional, não há mais pacto. Todos os preconceitos e todo o ódio reacionário parecem aflorar sem filtros ou freios, destruindo qualquer utopia de futuro. Um pensamento único se consolida sob os auspícios do grande capital financeiro e da grande mídia monopolista: austeridade fiscal para oferecer segurança e estabilidade ao mercado.
PublicidadeA partir de conceitos primários e grosseiros, como a comparação entre o orçamento doméstico e o orçamento público, oferece-se ao povo que a supressão de direitos duramente conquistados são o único caminho para o equilíbrio das contas públicas, a estabilidade econômica e a retomada da produção. Aproveitando-se de um momento de profunda impopularidade do governo, criminalizaram-se as políticas econômicas heterodoxas, para construir o pretexto para o rompimento do pacto democrático, com a cassação da Presidente Dilma Rousseff.
Estimulou-se a percepção na população – através de um cerco político promovido pela Câmara dos Deputados, liderada à época por um verdadeiro gângster político, hoje preso, e da voz uníssona da grande mídia – de que estaríamos à beira do caos. O medo da crise e o terror da incerteza no futuro são utilizados para gerar na população um estado de espírito mais receptivo a medidas duras de austeridade fiscal.Um novo governo, constituído pela força mais fisiológica do antigo governo, sem o PT, substituído pelo PSDB e DEM, apresenta à Nação um novo programa de governo, cujo conteúdo se reduz à medida de cortes orçamentários e onde se fazem afirmações absolutamente tolas de um liberalismo obsoleto, de um monetarismo vulgar e vazio, sobre a gastança inútil do Estado. Um programa que, muitos analistas reconhecem, jamais seria passível de merecer o apoio da população nas urnas e por isso – e só por isso – justificou esse impeachment, para justamente resultar nas medidas que estão buscando impor ao nosso País neste momento.
Mas com a PEC 241, essa pantomima chega ao seu auge. Pretende-se constitucionalizar a política fiscal e orçamentária, um fato absolutamente inédito no Planeta. E por 20 anos! Ou seja, revoga-se a democracia, pois os próximos cinco governos terão pouquíssima ou nenhuma capacidade, na verdade liberdade, para negociar ou cumprir novos compromissos para com a população brasileira.
Como constituinte, enfrentei com outros parlamentares intenso debate naquele momento, quando se pretendeu, na Constituição, colocar algumas regras da economia nacional. O pensamento liberal levantou-se com unidade para dizer que nós queríamos engessar a Constituição do Brasil, colocando regras que deveriam ser passageiras, porque diziam respeito a conjunturas econômicas, e as leis da economia não podiam ser engessadas em uma Constituição. Agora, se usa da ferramenta que se condenava no passado, e que sequer foi usada por nós com algum tipo de exagero, para engessar o Brasil em uma PEC que condena o futuro do nosso País ao não crescimento.
Diante de um grave quadro de estagflação, o governo Temer propõe mais do mesmo remédio ministrado por Joaquim Levy – tão debatido e condenado quase que pela unanimidade do Senado. O ministro Levy, apesar de ter frequentado o Senado e buscado muita negociação, realizou o mais brutal contingenciamento orçamentário da história da República. Mas desta vez, dizem os áulicos do governo, será diferente, porque o ministro plenipotenciário da Economia é um homem de Wall Street e recriará o clima de segurança jurídica e estabilidade econômica perdido.
A PEC 241 não trata de um ajuste fiscal. Na verdade, ela significa o desmonte do Estado de bem-estar brasileiro, consolidado pela Constituição de 1988. Significa a supressão radical de programas e direitos sociais. Não tem impacto sobre as contas públicas no curto prazo. Estudos oficiais demonstram que não são as despesas primárias federais que provocam ou provocaram o desequilíbrio das contas públicas no momento: essas despesas caíram mais de 2% em termos reais em 2015. Na verdade, a PEC 241 passa ao largo, ou pior, contribuirá para aprofundar as três razões de fundo da atual deterioração fiscal: a falta de crescimento econômico, a queda da arrecadação e o pagamento de juros.
O caminho necessário seria bem outro: uma reforma tributária progressiva; o fim de muitas das desonerações fiscais que se aprovou no governo passado e que continuam neste governo – e até ganharam o nome de “bolsa empresário”; o combate à sonegação fiscal; e a retomada de programas de investimento público em infraestrutura. Estas ações seriam o rumo mais correto a imprimir ao país, visando superarmos a crise presente e construirmos a possibilidade de futuro de um Brasil justo e democrático, com respeito à cidadania de cada brasileiro e cada brasileira.
Esta seria a homenagem possível que o partido de Ulysses Guimarães, hoje no poder, faria a este grande brasileiro no seu centenário. E esse mesmo partido hoje entrega ao Brasil aquilo que é a carta de condenação do seu futuro, do impedimento do seu crescimento e do caminho de rasgar e transformar a nossa Constituição cidadã em uma constituição sem validade para a cidadania do povo brasileiro. Muito obrigada.