Metalinguagem levada a sério é um porre. O legal é desacreditar nos grilhões, tanto faz se forem físicos ou metafísicos: viver é um absurdo, atravessar ruas e amar as mulheres também. É um pouco disso que resulta a peça de Marcelo Rubens Paiva. Vale dizer que ele não correu risco nenhum de se desfazer na geléia metalinguística porque, em primeiro lugar, soube escolher um elenco muito engraçado (tão ou mais descomprometido do que ele nessa viagem dentro da Noite mais fria do ano) e, depois, porque ele não seria besta de se meter a Pirandello nessa altura do campeonato. Me senti em casa. Quase na coxia jogando pôquer com os atores: aliás, aqui vai uma sugestão, essa “cena” poderia ser incorporada nos próximos espetáculos.
Bem, vou falar um pouco da peça dentro das peças. A primeira parte, se é que podemos fazer essa divisão, acontece num quiosque localizado provavelmente no Leblon, posto 12. Trata-se do diálogo dos cornos. Caio, ou Mário Bortolotto, é o recém-demitido editor de fotografia apaixonado pela linda mulher do bundão interpretado por Alex Grulli, imediato subalterno que foi promovido de uma só vez a corno do ex-chefe e ao cargo do mesmo, se é que entendi direito.
De qualquer forma, não importam os cargos e as chefias, mas os chifres da história. Ao fundo, temos o quiosque e os grunhidos do quiosqueiro mais engraçado das praias da Zona Sul, Hugo Possolo. E ao fundo do fundo, o barulho do mar e os ecos da mulher, Paulinha Cohen ou Carol que, desde antes de entrar em cena, já subtrai os corações, as mentes e os testículos de quem os têm e se dispõe a imaginá-la através do embate marido versus amante, cama versus alcova. Vejam só.
Eu nunca havia reparado no quanto a Paulinha Cohen é boa atriz, além de ser muito gostosa. Carol beija mal. Esse detalhe é a marca do autor. E, além de beijar mal e presumivelmente trepar feito uma diaba, Carol foi pensada para habitar a supracitada metalinguagem com desenvoltura, graça e conhecimento de causa. Porque, afinal é uma mulher, e o terreno delas é este: o enfumaçado, o vago, o lugar nenhum e a confusão, o lusco-fusco e a incontinência, o lá e cá.
No decorrer da peça ela vai ganhar um olho roxo. Merecido. E “sem querer-querendo”, Carol pede mais porrada, o tempo todo.
Não seria exagero se eu dissesse que Carol é a síntese das fêmeas que Marcelo Rubens Paiva arregimentou nos seus livros e – imagino – ao longo de sua vida de Don Juan. A pergunta é: o que o autor, nesses tempos gays e politicamente corretos em que vivemos, poderia pretender com essas espécies, macho e fêmea, ambas em extinção?
A resposta é: MRP ateia fogo no que sobrou do cirquinho da razão masculina, bate no peito e devolve a banana para os gorilas priápicos, animais em extinção (eu me incluo) que agonizam na plateia. De onde se conclui que essa é, sobretudo – antes de ser metafísica –, uma peça mamífera. E deliberadamente machista, naquilo que esse ultrapassado conceito poderia ter de mais engraçado, datado e, pasmem, humano. Vai fazer o quê? Tentar entender a mulherada?
Só o Marcelo Paiva que se atreve – além de autor, também dirige a peça. Na segunda parte, a adúltera ressuscita de um tiro acidental e macarrônico levado no final do primeiro ato. Vou chamar de primeiro ato, mas não é. Enfim, vale que Carol volta em carne e osso e trajes sumários ao palco, dessa vez como a mulher do ex-quiosqueiro. Que agora, por sua vez, se transforma em fotógrafo e editor de fotografia (dois em um), além de ser o Hugo Possolo. Nesse instante delicado do espetáculo, quem “entende” as mulheres dá uma colher de chá para a ontologia e para a metalinguagem.
Um dado. O ramo central da metafísica chama-se ontologia. De um ponto de vista feminino, digamos assim, essa excentricidade filosófica tenta decifrar em quais categorias as coisas estão no mundo e quais as relações dessas coisas entre si. Uma voltinha no shopping com uma mulher do tipo da Carol é o suficiente para esclarecer a existência e a natureza do relacionamento entre essas coisas (bolsas, sapatos, perfumes) e suas propriedades. Nem vou falar da musse de chocolate. Mulher é um bicho complicado. Nasceu – eu acho, e o Marcelo Paiva sabe disso – para a metalinguagem, para o além.
No caso da Carol (um tipo verossímil, diga-se de passagem), esse “além” inclui obrigatoriamente o gosto de levar umas bolachas. Há muito desisti de entendê-las. Mas o Marcelo Rubens Paiva sabe que os elementos “mulher” e “outras dimensões” estão diabolicamente imbricados. E é aí que a Noite mais fria do ano esquenta pra valer.
No momento mais perigoso, quando os laços da metalinguagem estão afrouxados, soltos, na hora em que a peça corre um risco iminente de virar uma chatice pirandelliana, bem, nesse momento, Hugo Possolo abre a champanhe da Noite mais fria do ano, que, para o alívio da macacada, vira uma festa dos atores e da atriz em cena. Teatro. Ou melhor, circo. O habitat de Possolo por excelência. Marcelo Rubens Paiva, insisto, caprichou na escolha do elenco. Caramba, Possolo é perfeito para esse papel, como ele é engraçado! Por Deus, como Paula Cohen é gostosa.
Tenho de confessar: tive 45% de ereção na cena em que Paula-Carol vai e volta do banheiro – cada vez mais nua no seu retorno, fazendo um strip nada metafísico e completamente disléxico, ah, que delícia quando ela paga umas tetas para a plateia e desafia, com suas conjecturas histéricas e inapelavelmente femininas, a suposta rival, uma advogada criminalista que existe/não existe do outro lado da linha do telefone. A cada vitória no campo das chantagens, uma lingerie a menos.
Taí a grande engenharia do Marcelo Paiva, o falso machista que entende de mulheres como poucos. A meu ver, o strip disléxico de Carol-Paulinha Cohen é o ápice do espetáculo. Tenho a impressão de que a mulherada vai adorar essa Noite mais fria do ano, sobretudo as histéricas, porque as normais irão para casa com a sensação de que ainda podem – e devem e precisam – levar mais umas bolachas. Viva Nelson Rodrigues!
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A peça vai ficar em cartaz até dia 18 de novembro, terças e quartas-feiras às 21 horas. Quem quiser ver isso e muito mais, inclusive o Mário Bortolotto de terno e gravata, é só ir ao Teatro Poeira, cujo endereço é: rua São João Batista, 104, Botafogo, Rio de Janeiro.