Gilda Cabral *
O presidente da República que assumir a direção do país a partir de 2007 não terá mais como driblar os investimentos na área social. O projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), aprovado em junho pela Comissão Mista de Orçamento do Congresso Nacional (CMO), obriga o poder público a garantir a aplicação de recursos na redução das desigualdades e na inclusão social.
O pagamento da enorme dívida social do país não poderá ficar restrito ao discurso e às promessas de candidatos. Se aprovado como está pelo Congresso Nacional, em sessão marcada para o início de agosto, o texto do projeto que orienta como deverá ser aplicado o orçamento no decorrer de 2007 terá um perfil socialmente responsável.
O caráter social incluído na lei que trata de finanças públicas foi possível graças ao aumento da participação da sociedade civil nas discussões sobre gasto público dentro do Congresso.
O Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), na primeira audiência promovida pela comissão mista com a sociedade civil, sugeriu 14 emendas ao projeto da LDO. Dessas, 11 foram incluídas integralmente, uma parcialmente e apenas duas foram rejeitadas.
Todas as emendas sugeridas pelo Cfemea foram anteriormente discutidas e apresentadas pela bancada feminina e por outros 38 parlamentares do Congresso, além da Comissão de Legislação Participativa e da Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados.
Relatórios de impacto
O texto da LDO incluiu emenda que obriga as agências oficiais a publicarem relatório anual do impacto de suas operações de crédito no combate às desigualdades.
Esses relatórios de impacto, a serem elaborados pelos órgãos públicos e pelas agências de fomento, como Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil e BNDES, deverão informar como os programas desenvolvidos e os recursos aplicados por cada uma dessas instituições públicas atingiram diferentemente os homens, as mulheres, as pessoas negras, as brancas, as portadoras de deficiências e ainda velhos e jovens. É demonstrar como o dinheiro público é usado para inclusão social dos diferentes segmentos de nossa sociedade.
A elaboração desses relatórios anuais por parte dos ministérios e agencias públicas de fomento representa o primeiro passo para estabelecer indicadores sociais da ação governamental. Com eles, a sociedade saberá como o dinheiro do governo pode agravar ou combater as desigualdades.
Por exemplo: o impacto com a construção de um conjunto habitacional será distinto (considerando a variável gênero) se o mesmo inclui ou não a construção e funcionamento de creche, pré-escola e escola de tempo integral para atendimento das crianças. Se na comunidade as mulheres têm onde deixar os seus filhos com segurança, elas conseguirão trabalhar fora de casa e disputar um vaga no mercado de trabalho. Este tipo de relatório de impacto associa uma série de ações governamentais que nem sempre são vistas com esse olhar das desigualdades.
Um projeto de iluminação pública que acabe com os locais escuros, como os terrenos baldios, pode ser avaliado a partir de dados como a redução do numero de estupros naquela área. Enfim, esses relatórios de impacto no combate às desigualdades vão mostrar com mais exatidão a realidade e serão preciosos instrumentos para avaliar e redirecionar a ação governamental.
Ainda segundo o projeto da LDO, a elaboração e a execução do orçamento fiscal e da seguridade social deverão obedecer à diretriz do Plano Plurianual 2004-2007 de redução das desigualdades de gênero, raça e etnia, como estabelece a Lei 10.933/04.
Combate ao racismo
A emenda 17.750.017 apresentada por parlamentares do PCdoB, aceita pelo relator e aprovada na CMO, teve forte apoio do Cfemea. É emblemática e simbólica na medida em que proíbe às agências financeiras oficiais de fomento conceder ou renovar empréstimos ou financiamentos a instituições cujos dirigentes sejam condenados por assédio moral, racismo ou trabalho escravo. Essa é uma eficaz medida para acabar com a impunidade.
Combate à violência contra a mulher
O projeto da LDO ainda protege de contingenciamento as despesas com as ações vinculadas ao Programa de Prevenção e Combate a Violência Contra a Mulher.
Recentemente, a bancada feminina, com o apoio e mobilização do movimento de mulheres, conseguiu aprovar a lei de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra as mulheres. Não contingenciar as ações do programa tem um forte simbolismo, pois sinaliza que a vida das mulheres é mais importante que fazer superávit primário.
Controle social
Os recentes escândalos de mensalão e sanguessugas lembraram aos parlamentares que não existe nada mais eficaz para combater a corrupção e o desvio dos recursos públicos do que a participação social.
As emendas aprovadas na Comissão Mista de Orçamento trazem avanços no campo da transparência e na democratização do processo orçamentário e atendem a reivindicações antigas das organizações e movimentos sociais e de mulheres.
O projeto da LDO estabelece garantias para o controle democrático dos gastos públicos. Na proposta do Cfemea, o acesso aos dados deveria ser garantido a todas as pessoas, mas o relator do texto, senador Romero Jucá, incluiu a possibilidade de as entidades sem fins lucrativos serem habilitadas pelos órgãos competentes para acessar diretamente os sistemas de administração financeiras do governo, tais como Siafi, Sidor, Angela e Sigplan.
Ainda no contexto do controle social, outra emenda ao projeto da LDO prevê que o Poder Legislativo possa realizar audiências públicas regionais e temáticas durante a apreciação da proposta orçamentária, que contarão com a participação de entidades dos movimentos sociais.
Resgate do papel constitucional
Diante de tantas conquistas, fica notório o fato de que a participação da sociedade civil no processo de elaboração da LDO resgatou o papel constitucional da lei. Nossa luta, iniciada com sucesso, é conscientizar a sociedade de que o orçamento é um instrumento político, e que não é preciso ser especialista em economia para atuar e influenciar o governo federal para o melhor uso e destinação das verbas públicas.
O governo, em vez de fazer alto superávit primário e privilegiar o capital financeiro, deve se preocupar em pagar a dívida social. E cabe à sociedade, a partir dos mecanismos de transparência e participação previstos na LDO 2007, ficar de olho para garantir o cumprimento da lei.
* Gilda Cabral é diretora do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea)