Em 13/11/2015, o presidente do STF, Ricardo Lewandowski disse, numa palestra proferida numa faculdade de São Paulo:
“Temos de ter a paciência de aguentar mais três anos [até as eleições de 2018] sem nenhum golpe institucional” (grifado meu). Esta frase provocou uma fúria desmedida naqueles que, desde outubro de 2014, procuravam qualquer pretexto para derrubar a presidenta. Eles perceberam que o ministro tinha posto o dedo na ferida.
Tempo depois, em 30/03/2016, ele e vários outros ministros do STF foram entrevistados por jornalistas que perguntaram se o impeachment era golpe. Lewandowski respondeu que a palavra ‘golpe’ era própria da linguagem política, e esse termo não se usava no judiciário. Desta vez, estando no próprio STF, o ministro foi menos explícito, mas ficou claro que a resposta era afirmativa.
Na mesma época, o ministro Marco Aurélio de Mello respondeu, com seu habitual senso de precisão, que um impeachment sem fato jurídico transparecia como golpe. Isso faz pensar que, se aquela ação “transparecia” como golpe para a opinião pública, com maior razão deveria transparecer claramente para sua principal vítima: a presidenta.
Já nesta quarta feira 18 de maio, os principais partidos da coalizão do atual interinato protocolaram uma ação para que o STF peça esclarecimentos a Dilma sobre seis pontos.
Os primeiros cinco são redundantes e exigem o seguinte: que Dilma ratifique se insiste na teoria do golpe; que diga quais são os componentes do golpe; quais são os responsáveis; quais são as instituições: e se o Congresso e os autores da denúncia são os golpistas.
O último ponto é grotesco: que medidas vai adotar a “interpelada” para evitar o golpe? A única medida possível é a denúncia pública nacional e internacional, que é o que produziu a reação raivosa dos golpistas. Por sinal, eles mostram sua preocupação para que a sociedade não seja envolvida em dúvidas. Esse zelo pela pureza da informação é uma das maiores piadas que se fizeram no Brasil. Woody Allen morreria de inveja.
PublicidadeMas, o pior foi o acolhimento desse libelo pela juíza Rosa Weber, que seria impensável em qualquer democracia séria. A juíza enquadrou a ação (porém, de maneira “facultativa”) no decreto 2848 de 07/12/1940, dez anos mais velho que a vetusta lei de impeachment.
Para começar, levar a sério a ação é um acinte ao direito de denúncia. Não lembro nenhuma manobra de mordaça tão abrupta, nem que o judiciário de país algum, por pequeno que fosse, se tivesse submetido a ela. Mas, também, é preciso reflexionar que Weber não é uma pessoa inexperiente, e que sua aparente convicção da justeza do ato pode ser apenas (quem sabe?) uma caridade com os que pretendem intimidar a presidente, algo que ninguém conseguiu por enquanto.
Em segundo lugar, é bem conhecido que Dilma evitou muito bem, mesmo nos discursos mais emocionados, mencionar seus inimigos pelo nome. Quando falou de golpistas e traidores nunca deu nome, sobrenome ou RG das pessoas às quais se referia. Como é bem sabido, o sujeito passivo de uma ofensa deve estar sempre bem determinado. Se assim não fosse, o mundo todo teria direito a processar uma pessoa que diga algo como “o mundo é cruel”, ou coisa do gênero.
O decreto usado pela juíza (incorporado ao CP como artigo 144) autoriza que alguém se sinta ofendido por falas das quais se infira calúnia, injúria ou difamação. Inferir, como todos sabem, significa “tirar conclusões a través de regras válidas”. Ora, quais são as regras válidas que pode usar uma magistrada que condena sem provas? No caso José Dirceu, a juíza Weber usou como regra a presença de “indícios que gritam nos autos”. Esta vez vai precisar de Esténtor, o arauto da Guerra de Tróia que era o segundo gritão do mundo, depois do deus Hermes, que o derrotou um duelo de gritos. Aliás, quiçá a juíza precise do próprio Hermes.
Talvez os jornais estrangeiros nem mencionem este absurdo da interpelação, mas também pode acontecer que alguns não resistam a tentação de publicar as provas do assédio. Lembremos que The Economist, um veículo lido por empresários e executivos, que não tem a mínima simpatia pela democracia, se espanta da weird justice que se pratica no Brasil, ao se referir à Lava Jato.
No lugar da juíza, qualquer pessoa com bom senso evitaria aumentar a volumosa coleção de arbitrariedades e insanidades dos poderes públicos, porque a comunidade internacional já assistiu a muitos “circos mediáticos de horror” de produção nacional.
O Congresso aterrorizou com os 367 deputados “justificando” seu voto com a apologia da tortura e da ditadura, com homenagens a vovós e a “nascituros”, com menções à Bíblia e similares. A partir do lançamento do impeachment, o STF (salvo dois ministros) não mostrou nenhuma preocupação pela próxima implosão do sistema democrático, apesar dos numerosos pedidos da AGU sobre aspectos óbvios.
Apenas um dia após o golpe, o novo Executivo fechou os ministérios da cultura, dos direitos humanos, das mulheres e da igualdade racial. Vários ministros são suspeitos ou processados por crimes de corrupção, sem falar do presidente. Outros têm um perfil de meter medo: advogados de gangues criminosas e torturadores de estudantes, médicos que querem acabar com o sistema de saúde, um chanceler que procura encrenca com os vizinhos, um ministro de “deseducação” que quer reduzir o salário dos professores, e um pastor no absurdo papel de ministro de ciência.
É difícil lembrar uma situação similar, salvo quando o Talibã tomou o poder em Cabul e destruiu tudo o que não era “sagrado”.
Golpes Históricos: Bonaparte
Resta saber como procederá a ministra para decidir se Dilma injuriou, difamou ou caluniou as instituições brasileiras!
Não é suficiente o conhecimento jurídico, pois “golpista” não figura no código penal nem na CF. Também não é um palavrão, nem possui sentido de ofensa na linguagem cotidiano, como seria “bandido”, “mafioso”, “canalha”, e outros similares. A única semelhança, na gíria popular, seria o “golpe do baú”, mas não parece isso o que os impetrantes querem dizer, claro… salvo melhor juízo…
“Golpe” é um termo que se refere à desestabilização de um governo sem uma justificação legal (provada, é claro; não inventada). Sendo o termo político será necessário procurá-lo nas fontes mais respeitadas em ciências políticas. Na ciência não existe, como no direito, o critério de autoridade que se origina nas “lavras” dos mestres. Há, porém, critérios de consenso.
De grandes cientistas como Chomsky a prêmios Nobel, como Pérez Esquivel, de militantes sociais a jornalistas sérios, de deputados portugueses a partidos políticos franceses, milhões de pessoas autorizadas repetem as palavras golpe, coup e putsch. Talvez a ministra devesse ler um pouco de história.
A primeira vez que foi usada a palavra coup d’Etat foi em 9/11/1799 (ou seja, nos dias 18-19 de Brumário do ano VIII), quando Napoleão Bonaparte fechou o Diretório e criou o Consulado com manobras puramente institucionais e sem violar as leis da época.
Como sabemos desde os anos 1950-70, graças aos seminais trabalhos de Holman, Tulard e outros, Napoleão usou para seu golpe recursos que ainda hoje seriam legais. (Afinal, na América Latina ainda não chegamos a 1799! Ainda não tivemos a Revolução Burguesa de 1789)
Como hoje, um dos recursos legais mais poderosos foi a mídia. Na época não existia a TV, mas 60% dos franceses liam; então a manipulação dos jornais foi fundamental para o triunfo do golpe de Napoleão. Também como hoje, os golpistas eram louvados pela imprensa, especialmente Napoleão, seu irmão Lucien e seus cúmplices principais: Talleyrand, Sieyès, Regnault de Saint-ean d’Angély e Volney.
Pierre-Louis Roederer, que na época cuidava do Journal de Paris (aka Poste de Paris), preparou a propaganda para justificar o golpe. Esse jornal, incompleto, encontra-se na biblioteca central da Bélgica, mas o leitor pode ver alguns resumos em:
Para preparar o golpe, Bonaparte e o Journal acusaram os membros do Diretório de corrupção (!) e espalharam numerosos boatos. Como os três “patéticos” que redigiram a denúncia no golpe de Brasil 2016, os políticos Berenger, Cabanis e Gaudin escreveram todos os libelos que acusavam o diretório de “tirania”, “despotismo” e conduta “antirrepublicana”.
(NOTA: Não quero ofender a memória deste trio de políticos franceses os comparando com o nosso trio. Aponto, apenas, as semelhanças dos processos.)
O Senado (Conseil des Anciens) invocou os artigos 102, 103 e 104 da Constituição para outorgar a Napoleão o papel de comandante geral das forças armadas. Nesta condição (porém sem fazer uso da força militar), Bonaparte foi à Assembleia legislativa no dia 19 de Brumário, onde os deputados abandonaram o espaço ou se uniram a ele.
A principal diferença com Brasil 2016 é que, dos cinco integrantes do Diretório, três renunciaram covardemente e viraram logo a casaca. Os outros dois foram destituídos. Ninguém resistiu o golpe com o empenho os setores populares do Brasil.
Para “convencer” os indecisos, os dois irmãos de Napoleão extorquiram alguns dos líderes da Assembleia, e obrigaram os legisladores a vir ao local para formar quórum. Quantas coincidências, hein?
O Parlamento da época, então, aceitou uma nova forma de governo, o Consulado, cujos membros foram Bonaparte e dois ex-diretores subservientes. Não se disparou nem um tiro, e não houve nem um detido.
Golpes históricos: Hitler e outros
Em Munique, em novembro de 1923, o famoso putsch da cervejaria, liderado por Hitler e os SA (que eram civis naquela época) tampouco usou a violência. O exército de República de Weimar interveio, mas não para apoiar o golpe; pelo contrário, o que fez foi prender os golpistas. Hitler só disparou um tiro ao ar, como celebração do golpe, antes que percebesse que havia fracassado.
Também entra na história o golpe paraguaio e mais outros que não se utilizaram do exército.
Há algo que pode ser mais chocante para o mundo civilizado que o golpe em si mesmo: a afronta ao direito de expressão, que deveria ser concedido a qualquer cidadão, independentemente de seu status. Deve lembrar-se que o artigo 144 diz que,se a explicação do interpelado não fosse satisfatória a critério do juiz, este considerará que existe a infração. Passando a limpo: punir ou não o direito de fala depende do arbítrio judicial.
A censura do STF sobre qualquer cidadão é um antecedente pavoroso e pode contribuir à abalar ainda mais a fama das instituições brasileiras, que apenas os EUA, Paraguai e a Argentina ousam elogiar. Por sinal, no seu túmulo, o arrogante e chauvinista general De Gaulle deve estar rindo.