Márcia Denser*
Como venho discutindo a questão dos intelectuais, incluindo-se aí os escritores e a literatura brasileira, incluindo também paralelamente as questões levantadas pelo Mirisola em suas colunas, de repente caiu-me nas mãos As Idéias Fora do Lugar de Roberto Schwarz [1]: o começo de tudo, a origem, o cerne do problema das idéias no Brasil, formulado neste ensaio que é um dos mais originais produzidos pelo pensamento brasileiro contemporâneo.
Publicado em primeira edição em 1977, naturalmente eu já o havia lido, contudo, agora, sua releitura é extremamente apropriada e produtiva para dar nexo e sentido às crises inculturais do presente. De forma que, tendo feito uma condensação de suas trinta páginas (que espero que seu autor aprove), doravante vou citar e muito consciente de estar prestando um bom serviço ao leitor, a mim e, last but not least, ao Mirisola (ele que me aguarde). A propósito: o assunto tomará duas colunas:
“Logo após a Independência (1822), o Brasil era um país agrário, dividido em latifúndios, cuja produção dependia do trabalho escravo por um lado, e por outro do mercado externo. A reprodução do sistema econômico internacional prendia os olhos e desejos da elite brasileira a coisas e idéias sem qualquer continuidade com as nossas relações sociais de base, que ficavam relativamente emudecidas, sem coroamento na civilização material e ideológica. Este o insolúvel problema ideológico dos beneficiados da ordem brasileira, que ontem como hoje procuram gozar das vantagens combinadas do atraso social e do progresso material.
Celso Furtado analisa esta descontinuidade não só como imitação desencontrada, mas também como elemento causal do subdesenvolvimento. Eis o que ocorreu: com base no comércio internacional ampliado, surge uma nova divisão internacional do trabalho, impulsionada pela Inglaterra, entre países que se industrializam e países que fornecem matéria-prima e alimentos. Nestes, os grupos dominantes são levados a usar sua riqueza importando os novos bens de consumo produzidos pela economia industrial. Neste sentido, modernizam-se à custa da produção agrícola e extrativa, que fica onde estava. Assim, as elites locais foram habilitadas para seguir de perto os padrões de consumo do centro, a ponto de perderem contato com as fontes culturais dos respectivos países. As conseqüências surgirão mais adiante, na fase da “substituição de importações”, quando estes países embarcam na industrialização e procuram produzir o que importavam: a constelação de bens consumidos pelos grupos modernizados vai ditar a direção do esforço industrial. Ora, esses bens implicam métodos produtivos próprios, que não têm relação com o nível local de acumulação de capital. Então o aparelho produtivo se divide em dois: um segmento ligado às exportações e mercado interno (rural e urbano) e outro constituído por indústrias de elevada densidade de capital, produzindo para a minoria modernizada. Como esse segundo segmento necessita, para sobreviver, do excedente gerado pelo primeiro via comércio internacional, modernização e desenvolvimento das forças produtivas são complementares da opressão e super-exploração de grande parte da população, que continuará em nível de subsistência.
Vêm e vão daí nossas “singularidades”.
Voltando ao tema: era inegável a presença entre nós do raciocínio econômico burguês – a prioridade do lucro com seus desdobramentos sociais – posto que dominava no comércio internacional, para o qual se voltava nossa economia. Havíamos feito a Independência em nome de idéias francesas, inglesas e americanas, variadamente liberais, que assim faziam parte de nossa identidade nacional. Mas por outro lado, fatalmente esse conjunto ideológico iria se chocar contra a escravidão e seus defensores, e o que é mais, viver com eles. Por sua mera presença, a escravidão indicava a impropriedade das idéias liberais, mas sendo embora a relação produtiva fundamental, a escravidão não era o nexo efetivo da vida ideológica. A chave era outra. Para descrevê-la, é preciso olhar o país como um todo.
Esquematizando, pode-se dizer que a colonização produziu, com base no monopólio da terra, três classes de população: o latifundiário, o escravo e o “homem livre”, na verdade, dependente. Entre os dois primeiros a relação é clara, mas é a multidão dos terceiros que nos interessa.
Nem proprietários nem proletários, seu acesso à vida social e a seus bens depende materialmente do favor, direto ou indireto, de um grande. O agregado é a sua caricatura. O favor é o mecanismo através do qual se reproduz uma das grandes classes da sociedade brasileira, envolvendo também outra, a dos que têm. Note-se que é entre estas duas classes que irá acontecer a vida ideológica nacional, regida pelo mecanismo do favor.
Assim, com mil formas e nomes, o favor atravessou e afetou no conjunto a existência nacional, ressalvada sempre a relação produtiva de base, esta assegurada pela força. Esteve presente por toda parte, nas mais variadas atividades como administração, política, indústria, comércio, vida urbana, etc. Mesmo profissões liberais como a medicina, ou qualificações operárias, como a tipografia, que, na acepção européia, não deviam nada a ninguém, entre nós eram governadas por ele. E assim como o profissional dependia do favor para o exercício da sua profissão, o pequeno depende dele para a segurança de sua propriedade e o funcionário para o seu posto.
O favor é a nossa mediação quase universal – e sendo mais simpático que o nexo escravista, a outra relação que a colônia nos legara, é compreensível que os escritores tenham baseado nele a sua interpretação do Brasil, involuntariamente disfarçando a violência que sempre reinou na esfera da produção. O escravismo desmente as idéias liberais; mais insidiosamente o favor, tão incompatível com elas quanto a escravidão, as absorve e desloca, originando um padrão particular. O elemento de arbítrio, o jogo fluido de estima e auto-estima a que o favor submete o interesse material, não podem ser integralmente racionalizados. Na Europa, ao atacá-los, o universalismo visara o privilégio feudal. No processo de sua afirmação histórica, a civilização burguesa postulara a autonomia da pessoa, a universalidade da lei, a cultura desinteressada, a remuneração objetiva, a ética do trabalho, etc. – contra as prerrogativas do Ancien Régime.
O favor, ponto por ponto, pratica a dependência da pessoa, a exceção à regra, a cultura interessada (de rabo preso), remuneração e serviços pessoais. Entretanto não estávamos para a Europa como o feudalismo estava para o capital – a colonização é um feito do capital comercial. No auge em que estava a Europa, e na posição relativa em que estávamos nós, ninguém no Brasil teria a idéia e principalmente a força de ser um “Kant do favor” para encarar o outro.
Numa relação tão desigual, no campo dos argumentos, adotávamos os que a burguesia européia havia elaborado contra arbítrio e escravidão, enquanto na prática, geralmente dos próprios debatedores, sustentado pelo latifúndio, o favor reafirmava sem descanso os sentimentos e as noções que implica. O mesmo no plano das instituições, a exemplo da burocracia e da justiça, que embora regidas pelo clientelismo, proclamava as formas e teorias do estado burguês moderno.
Aí a novidade: adotadas as idéias e razões européias, elas serviram de justificação, nominalmente “objetiva”, para o momento de arbítrio que é da natureza do favor. Ao legitimar o arbítrio por meio de alguma razão “racional”, o favorecido conscientemente engrandece a si e ao seu benfeitor, que por sua vez não vê, nessa era de hegemonia das razões, motivo para desmenti-lo. Nestas condições que importava a justificação? Não era esse o problema, pois todos reconheciam – e isto sim era importante – a intenção louvável, seja do agradecimento, seja do favor. A compensação simbólica podia ser um pouco desafinada, mas não era mal agradecida (o que equivale dizer: o poema/conto/romance pode ser uma merda, mas foi ‘bem intencionado’. E todos sabemos que lugar é cheio de boas intenções. Para a literatura, a ciência e tudo o mais na vida, tentativas não contam, apenas resultados [2]).
Quer dizer, era desafinada em relação ao Liberalismo, que era secundário, e justa em relação ao favor, que era principal. E nada melhor, para dar lustre (prestígio) às pessoas e à sociedade que formam, do que as idéias mais ilustres (prestigiosas) do tempo – no caso as européias. Nesse contexto as ideologias não descrevem sequer falsamente a realidade e não gravitam segundo uma lei que lhes seja própria – por isso as chamamos de ‘ideologias de segundo grau’. Sua regra é da ordem do relevo social, em detrimento de sua natureza cognitiva ou de sistema”.
Pois é, nada como um pensamento claro, incisivo, triturador de qualquer veleidade idiota, para botar tudo e todos em seus respectivos poleiros. E por hoje, é isso aí, continua na próxima coluna.
[1] In Ao Vencedor As Batatas, São Paulo, Duas Cidades, 2000 – 5ª. edição, estudo sobre as conexões entre forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro.
[2] Sentenças e palavras em grifo são meus, não do Autor.