Prosseguindo com a segunda e última parte da nossa condensação de As Idéias Fora do Lugar, de Roberto Schwarz (leia mais):
“No contexto brasileiro, as idéias da burguesia européia – cuja grandeza sóbria remonta ao espírito público e racionalista da Ilustração – tomam função de ornamento e marca aristocrática: atestam e festejam a nossa participação numa esfera augusta, no caso a da Europa que se… industrializava.
Aqui (no Brasil), o teste da realidade e da coerência não parecia decisivo, sem prejuízo de estar sempre presente como exigência reconhecida. Assim, como método, atribui-se independência à dependência, utilidade ao capricho, universalidade às exceções, mérito ao parentesco, igualdade ao privilégio. Mas ao se tornarem despropósito, as idéias liberais deixam também de enganar.
Mas a novidade não está no caráter ornamental do saber e cultura, presente em toda tradição colonial ibérica, está na dissonância incrível que causam o saber e a cultura de tipo “moderno” quando postos neste contexto: são inúteis como um berloque? são brilhantes como uma condecoração? envergonham-nos diante do mundo?
A vida ideológica degradava e condecorava seus participantes para manter-se precisa de cumplicidade permanente, cumplicidade que a prática do favor tende a garantir – a nenhuma parte interessa denunciar a outra, tendo todos os meios de fazê-lo. Esta cumplicidade sempre renovada tem continuidades sociais mais profundas, que lhe dão peso de classe: no contexto brasileiro, o favor assegurava às duas partes, em especial à mais fraca, que nenhuma era escrava. Até o mais miserável dos favorecidos via reconhecida nele sua livre pessoa. Lastreado pelo infinito de dureza e degradação que esconjurava – a escravidão, de que as duas partes beneficiam em se diferenciar – este reconhecimento é duma conivência sem fundo, multiplicada pela adoção do vocabulário burguês da igualdade, do mérito, do trabalho, da razão.
Enfim, nas revistas, nos costumes, na arquitetura, nos símbolos nacionais, na teoria e onde mais, sempre a mesma composição “arlequinal”, no dizer de Mário de Andrade: o desacordo entre a representação e o que, pensando bem, sabemos ser o seu contexto. A sensação que o Brasil dá em seus contrastes rebarbativos, desproporções, disparates, anacronismos, contradições, conciliações – combinações que o Modernismo, o Tropicalismo e a Economia Política nos ensinaram a considerar.
Consolidada por seu grande papel no mercado internacional, e mais tarde na política interna, a combinação de latifúndio e trabalho compulsório atravessou a Colônia, Reinados e Regências, Abolição, a Primeira República. (e a Segunda, veja-se aí o tratamento dispensado ao MST, para dizer o mínimo (grifos meus).
Em conseqüência, um latifúndio pouco modificado viu passar as maneiras barroca, neoclássica, romântica, naturalista, modernista e outras, que na Europa acompanharam e refletiram transformações imensas na ordem social. Aqui, soaram a desajuste, aliás, inevitável, ao qual nos condenou a máquina do colonialismo, estando ela própria condenada.
Para as artes, a solução parece mais fácil, pois sempre houve modo de adorar, citar, macaquear, saquear, adaptar ou devorar estas maneiras e modas todas, de modo que refletissem, na sua falha, a espécie de torcicolo cultural em que nos reconhecemos. Em suma: as idéias liberais não se podiam praticar, sendo contudo indescartáveis. Foram postas numa constelação especial – uma constelação prática – que formou sistema e não deixaria de afetá-las. Por isso, pouco ajuda insistir na sua clara falsidade, mais interessante é acompanhar-lhes o movimento de que ela, a falsidade, é a parte verdadeira.
Vimos o Brasil, bastião da escravatura, envergonhado diante delas – as id&eac