Bajonas Teixeira de Brito Junior*
No Brasil, é comum as pessoas caírem sob o fascínio de certas palavras. Bom exemplo é a atração hipnótica que exerce, já faz uns bons anos, a palavra “gestão”. Mudou-se o termo “administração” para o termo “gestão” e o “administrador” tornou-se o “gestor”. Operado esse passe de mágica, aos poucos proliferaram os gestores em todos os ramos, instâncias, instituições, autarquias, institutos, departamentos e comissões do estado brasileiro. De Brasília, os gestores se propagaram e hoje estão em toda parte.
Multiplicam-se as expressões: choque de gestão, gestão local, ferramentas de gestão, gestão de parcerias, gestor responsável, modelo de gestão, corpo gerencial, gestão de pessoal, gestão de projetos, etc. O “choque de gestão” foi uma invenção de Aécio Neves, que nisso conseguiu inovar: juntou a idéia de porretada (choque) tão corrente no país, com o engodo de eficiência (gestão), e nos deu essa pérola: choque de gestão. Depois fechou-se como uma ostra (antes de cair do cavalo). Quando virá a próxima sacada de gênio? (Seja como for, já fez escola porque no Rio o prefeito implementou o “choque de ordem”)
Um manto de respeito sacrossanto desceu sobre a palavra. Por pouco, não se faz sentido e bate continência quando ela é pronunciada. Os anos passam e a gestão, assim como as celebridades, não sai de moda. Houve época em que outras invocações mágicas tomaram conta do cenário, como foi o caso com a qualidade total e a terceirização. Essas duas, depois de recobrirem num manto de bolhas de saliva a rapinagem desenfreada sobre o estado brasileiro, saíram de cena mudas e foram dormitar na gaveta do eterno esquecimento. A gestão tomou o lugar delas como nova fórmula propiciatória para a erradicação de todas as mazelas atinentes ao nosso mundo tridimensional.
Não adianta que a realidade desminta diariamente todas as promessas redentoras contidas na palavra. Pouco importa. Ninguém se ofende com isso, porque o plano da ilusão verbal forma um reino à parte. A realidade da palavra não precisa ser provada a partir de seus efeitos. Ao contrário, a repetição da palavra encobre os seus malfadados resultados. No mundo, já faz muito tempo, a fórmula de Hegel — “Tudo que é racional é real” —, que nunca correspondeu aos fatos, foi substituída por outra: “Tudo que se repete sem parar é real”. Esta fórmula corresponde aos fatos porque ela faz os fatos, mas os fatos feitos por ela são outros, diferentes daqueles que ela diz fazer. Se o Estado repete infinitas vezes que a educação vai bem, ela vai bem, ainda que afunde um pouco a cada dia.
Por falar em repetição, é com o mesmo apego à monotonia que o leitor brasileiro tem se integrado à crítica política, deixando seus comentários na internet: os da oposição vociferam contra os “petralhas”, os da situação, amaldiçoam o “PIG”. No filme Toute une vie (Toda uma vida), dirigido por Claude Lelouch, um personagem diz que a superstição é a muleta da inteligência. Como a inteligência claudica muitas vezes, ela faz da superstição seu cajado sempre à mão. No Brasil, o hábito da muleta fez a perna torna e a superstição, principalmente a das palavrinhas mágicas, virou norma. A inteligência média do país se fixou em um patamar sensivelmente abaixo da média.
Sob o manto da “gestão” está sendo encaminhado o crime monumental de Belo Monte, assim como os regimes especiais para as obras da Copa. E ninguém deu atenção às explosões que expressaram o desespero de milhares de trabalhadores de Jirau. Legiões dessas figuras anônimas caíram em um anonimato ainda mais fechado quando foram tocados, pela garbosa Força Nacional de Segurança, de volta para os grotões obscuros de onde haviam emergido. E deles nada mais se falou. Não eram uma prioridade de gestão.
O impulso mental de repetição sem fim de vez enquanto se encarna em surtos populares. Lembrem-se do famigerado “É ruim!” que assolou o país durante anos. Esse dito foi imortalizado no ótimo curta-metragem de Dinara Toffoli e Diego Godoy, Um homem sério (1996), cujo personagem Hilário Pestana (Ary França) se notabiliza pelo refrão “É ruim de ser!”. Hilário queria ser dramático mas escorregava sempre na casca de banana do cômico. É a cara do Brasil, que quer ser moderno na base do “choque de gestão”, seja aplicado pela polícia mineira seja pela Força Nacional de Segurança. O grande erro do nosso pensamento corrente consiste em imaginar que se um país se moderniza não pode, ao mesmo tempo, reforçar o que tem de grotesco e arcaico. Mas pode. A realidade não proíbe a contradição. A Alemanha, por exemplo, pelo menos de 1870 a 1945, passou por uma modernização brutal acompanhada de um crescimento igualmente frenético de suas tendências atávicas à violência. Lá terminou mal, mas aqui não, porque em nosso caso a guerra não é contra grandes potências vizinhas, mas, sobretudo, uma guerra para dentro, contra o “zé povinho”, o inimigo interno, chamado nas horas graves e nos palanques de cidadão. Se contamos com a Polícia Civil, a Polícia Militar, os Batalhões Especiais, a Força de Segurança Nacional, a Polícia Federal, e, agora, também o Exército e a Aeronáutica, podemos perguntar: contra quem é essa guerra?
Penso que se o impulso à repetição nos arrasta com tanta força, o motivo talvez seja o fato de que a própria sociedade — a sociedade de cima, a que cruza as cidades de helicóptero e o país, de jatinho — repete sempre a mesma face excludente. As cenas são monotonamente reeditadas. Até a nossa justiça cega tem olhos para ver que sempre livra os mesmos. Lembrem-se as operações aparatosas, como a Castelo de Areia, ou a Boi Barrica, que não deram em nada ou, o que é até mais sinistro, levaram a punir, ou a pretender punir, os investigadores ao invés dos investigados.
A repetição se mostra também nas figuras de poder, que sucedem-se em vínculos de parentela formando feudos de governança elástica: João Havelange, presidiu a CBD de 1956 a 1974, ou seja, 18 anos. Mas o país se modernizou e, agora, seu ex-genro, Ricardo Teixeira, dirige a CBF deste janeiro de 1989. Caso se afaste em janeiro de 2012, como está sendo anunciado (“para cuidar da saúde”), terão sido 22 anos de mando, quase um quarto de século. Eis como de 1956 a 2012 nos tornamos mais modernos. A mesma prorrogação temporal repetida, se vê nas figuras de poder inventadas pela Globo: o Boni, sucedido pelo Boninho. Até no reino das mercadorias, se procura deixar claro para o consumidor que a maior mudança é a repetição: o Danone, que vira Danoninho, o Toddy, que vira Toddynho.
Parece que em toda a história do Brasil dos últimos cem anos, a única coisa que fugiu à norma da repetição foi o súbito e inesperado débâcle do império Silvio Santos. Se o nosso Silvio, que não cansou de se repetir no palco durante toda a vida, vai morrer pobre, ainda não está decidido. Dizem os jornais hoje que é a figura mais admirada no Brasil. De todo modo, se terminasse seus dias na amargura da sarjeta não seria uma mudança real, mas só uma nova repetição: porque Silvio nasceu pobre.
No fim o que nos dará a gestão? A “qualidade total”, depois dos oito anos de PSDB na presidência, devolveu o país com um estado esquelético, literalmente no osso. E a “gestão”? Acredito que sua maior virtude será, como já está sendo, engordar a revista Forbes, dando a ela novos bilionários saídos daqui, da pátria amada mãe gentil (e que mãe seria essa se nem gentil fosse?). O Brasil dará, esta é a minha modesta opinião, ao final da sua síndrome psicótica de “gestão pública”, uma nova lição ao mundo sobre a geração de oportunidades desiguais. Enquanto o salário mínimo aprovado em 23 de fevereiro de 2011 foi, segundo dados do Dieese, o de menor aumento real concedido desde 2003 (um reajuste de 0,37%), o crescimento dos bilionários brasileiros, segundo a revista Forbes, saltou, de 2010 para 2011, de 18 para 30. Um crescimento de 66%. São os efeitos mais visíveis da “gestão”.
Em última instância, não é o encantamento religioso da palavra “gestão”, mas a obediência a quem tem a palavra, isto é, aos poderes constituídos no momento, que conduz a má-fé mística do brasileiro na senda estreita da obediência. Sua devoção é interesse e seu amém frente às palavras do poder é, sobretudo, a expectativa de um “a mim”. Afinal, quem mais se humilha mais se exalta, quem mais obedece mais é promovido. Assim são as coisas no lugar em que é sempre atual o ditado: Manda quem pode, obedece quem tem juízo.
*É doutor em Filosofia, autor dos livros Lógica do disparate, Método e delírio e Lógica dos fantasmas. Foi duas vezes premiado pelo Ministério da Cultura por seus ensaios sobre o pensamento social e cultura no Brasil. É coordenador da revista eletrônica, Revista Humanas , órgão de divulgação científica da Cátedra Unesco de Multilinguismo Digital (Unicamp) e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Ufes
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