Amadeu Garrido de Paula *
O humanismo do sonho do trabalho não alienado, justamente remunerado, com a superação da mais valia, o lucro ilegítimo açambarcado pelos patrões, as mazelas do sistema da propriedade privada dos meios de produção, o sangue, suor e lágrimas dos operários, a fome dos produtores e o ócio escandaloso de seus exploradores, tudo isso e muito mais compuseram um sistema insuportável para um mundo digno de ser habitado por homens e mulheres naturalmente iguais.
O capitalismo do capital acumulado não pelo avanço da ciência, da tecnologia, do conhecimento, mas pela exploração selvagem da grande maioria da humanidade, sujeito a modos de trabalho perversos, sem limitações de jornadas de trabalho, tirando do homem energias muito além do razoável, gerando seu enfraquecimento, doenças e morte precoce, tristeza por habitar um mundo como esse, sob tetos insalubres, invadidos pelo vento cortante e por chuvas impiedosas, não poderia ser o modelo ideal da vida humana em sociedade.
Entretanto, como modo de produção, não poderia ser erradicado de um único golpe. Caíriamos no oco econômico, num vazio anárquico, sem que o socialismo, o apoderamento dos meios de produção por toda a classe trabalhadora, via Estado, estivesse pronto para pôr-se em seu lugar. Fazia-se necessário o amadurecimento do sistema cruel porém produtor de imensas riquezas, significando a vitória do homem sobre a natureza bruta, inobstante em favor da minoria detentora da propriedade dos meios de produção.
Essa movimentação histórica seria determinada, inevitável, a despeito de percalços de percurso e da vontade dos homens. Nada diferente do movimento do espírito, por meio de tese, antítese e síntese, correspondente à evolução da consciência humana inevitável, essência do idealismo de Hegel. Só que às avessas. Ao invés do espírito, a matéria. A exploração como tese, a luta de classes como antítese e o socialismo como síntese. Assim Marx adaptou o pensamento filosófico predominante à realidade vital e concreta da humanidade.
Embalado por propósitos nobres, resumiu-se esse determinismo à utopia devastadora do século XX, em que o sofrimento humano não teve paralelos na história. A antítese consistente na luta de classes tomou conta de pensamentos poderosos. Contudo, a clareza solar desse determinismo começou a ruir em 1917, com a Revolução Russa. Liderada por intelectuais como Lênin e Trotsky, logo se observou que as grandes massas camponesas e operárias de uma indústria incipiente não tinham o mínimo senso de percepção de toda essa complexidade. O modo de comprometê-las a serviço da revolução foi a cooptação por um partido único. E a criação de instâncias burocráticas intermediárias – os sovietes – desde logo serviram à criação de um novo modo de desigualdade. A dos filiados e a dos não filiados. Em consequência, logo veio a hipertrofia do Partido e do Estado, substitutos dos antigos exploradores. Lançou-se, nesse momento, o gérmen de uma nova concepção de elite toda poderosa que levaria, no curso da história até nossos dias, à desconstrução da utopia socialista, tão profundamente edificada; e que continua, ainda, no pensamento político de muitos – equivocados.
Um dos dogmas mais fortes consistiu na justificativa de todos os atos e do comportamento habitual de todos os homens segundo sua opção pela respectiva ideologia. Em nome e favor da gloriosa revolução, que haveria de empolgar todos os povos do mundo, tudo foi permitido. A ética e a política se transformaram num conjunto de valores instrumentais. Honestidade, respeito aos direitos do próximo, à vida, à liberdade etc, somente se justificariam em função dos propósitos revolucionários. Valores fortes e respeitáveis, forjados desde os momentos iniciais da aventura humana sobre a terra, foram relativizados, com consequências drásticas. Assassinatos, em escala individual ou em massa, passaram a ser admitidos como um mal necessário. Os inimigos da revolução poderiam ser exterminados; afinal, não mereciam viver os adversários da maioria cheia de razões e movida por um senso de justiça inabalável.
A implosão da ética só poderia ocorrer com igual subestimação da verdade. A verdade única é a do pragmatismo revolucionário. Idem no que toca à honestidade. Podemos tomar o que não é nosso, desde que seja em favor do Partido e da Revolução. Como o dinheiro produz incômodas cócegas, pouco importa se o indivíduo a serviço da revolução se aproprie de parcelas do metal sagrado; pouco importa se a elite partidária ou os líderes da revolução se transformem na nova elite das benesses materiais, pronta para acusar outros segmentos do que denominam de “zelites”, inimigos figadais dos ideais populares. O regime das liberdades democráticas, não raro, foi usado como instrumento de tomada do poder, realçados seus valores, porém apenas para facilitar a instauração de uma anódina “ditadura do proletariado”.
A queda do Muro de Berlim e o fim melancólico do socialismo real deixou suas viúvas. Não obstante a evidência histórica, muitos persistem em avançar sobre a riqueza de todos os homens, sempre sob o manto da nobreza de seus ideais. A justiça do século XXI não os compreende, como não poderia, com efeito, fazê-lo. Daí o encarceramento de supostos e inatacáveis líderes, como tem ocorrido no Brasil, pela “justiça burguesa”.
Encontramo-nos numa travessia trágica em que urge repensar tudo.
* Amadeu Garrido de Paula é advogado especialista em Direito Constitucional, Civil, Tributário e Coletivo do Trabalho.