Reencontro a escritora Betty Milan após muitos anos – a «musa do lacan-can» – como ficou conhecida nos 80; o apartamento é o mesmo na Ministro Rocha Azevedo. Toco a campainha, é ela quem abre: o mesmo sorriso marcante, iluminado, os doces olhos árabes, uma ligeira penugem de cabelos brancos suaviza o contorno do rosto, a expressão repousa numa sabedoria mansa, de oásis, então subitamente a emoção irrompe no gesto espontâneo, na voz intensa. Porque Betty é um composto raro – paradoxal? – de razão & paixão, creio que um dos requisitos fundamentais para ser a escritora que é, algo confirmado por sua linguagem, seu estilo: ora, cortante, implacável, ora perpassado de ternura. Mas sempre na «hora» certa, pois raro é estabelecer esta dosagem, resultar nesta alquimia.
Morando em Paris há cerca de vinte anos, mas retornando periodicamente, desta vez veio a São Paulo para lançar o sexto romance Consolação (Record), que considera seu melhor livro. Leitora de apenas dois outros (Paris Não Acaba Nunca e O Século, entrevistas), concordo lembrando que, afinal, o escritor é naturalmente o melhor avaliador da própria obra. Mas do que trata o livro? É o drama duma brasileira que perde o marido na França e só encontra consolo quando retorna ao Brasil: ao descer no aeroporto, decide vagar sem rumo, ouvindo os dramas das pessoas. Errando pelo cemitério e pelas ruas, dialoga com mortos e moradores de rua – “os que nunca são vistos nem ouvidos”.
Se é que existem textos biculturais, Consolação é um deles. Porque se trata de uma lamentação em duas culturas, a francesa e a brasileira. Por ter vivido o amor, o casal trocara suas raízes: a viúva brasileira de um marido francês volta a São Paulo para encontrar numa cidade, sem vergonha e sem memória, o espírito do homem amado. O livro evolui numa estrutura em contraponto: entre a evocação de um amor francês, que acaba num hospital do tipo franco-filisteu, regido por essa neo-hipocrisia mais calhorda — onde o que conta “não é aliviar o sofrimento, mas não infringir a lei” — e a conversa com os mortos brasileiros, obra de magia negra, convocação de manes célebres, que dialogam à luz do dia (ao sabor da fantasia) duma metrópole sul-americana.
E isso quer dizer que, para se consolar do luto, é preciso voltar-se para si mesma, à cidade natal, para as origens – os ancestrais árabes – ao pai, já morto, à mãe, ainda viva – mas por quanto tempo? Se a cidade é São Paulo e o lugar é o Cemitério da Consolação, o espaço onírico é o Brasil inteiro.
Mas, cá entre nós: para mim o melhor do livro são as agudíssimas observações da autora, sobretudo quando passeia seu olhar implacável por Sampa :
«A cidade que não pode parar. São Paulo se vangloria disso. Existe há cinco séculos e só tem um ou outro lugar histórico. Sua verdadeira história é a da demolição. Tão indiferente ao passado quanto ao presente. Ninguém sabe onde fica o norte, o sul, ninguém vê o pôr do sol. No centro, torres de dinheiro ocupando o chão. Na periferia, anéis sucessivos de miséria, o berço de quem nasce sem berço… Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate (Deixe toda a esperança do lado de fora e entre!»
“Aqui até o rato fica estressado e todo ano o mesmo aviso que ninguém respeita. Condenados à repetição na “cidade que não pode parar”. Quando não é o Aricanduva, é o Tamanduateí, o Ipiranga, o Tietê, o Pinheiros que transborda. Retifica o rio, asfalta a várzea onde o rio se extravasa e loteia. Lucro certo. Retificaram, asfaltaram e lotearam. Onde havia vegetação, nasceu um bairro árido destinado à inundação. Compre um lote, eu vendo. Se o rio te pegar, azar o seu. A indiferença aos outros é o lema da cidade.”
«Na Cantareira, lá onde eu moro, chega a faltar água durante dois dias. Já avisaram que vai faltar de novo. A cidade inundada e nós padecendo com racionamento. O prefeito diz que a chuva esperada não caiu no lugar certo.»
“— Leva pra me ajudar, tia.
Estranho esse “tia”, que eu há muito não ouço.Se eu sou a tia, ele é o sobrinho, e, se eu não der o que ele me pede, eu fico
“O jesuíta doutrinava, o pajé fazia a contrapropaganda: a carne de quem se deixa batizar perde o gosto. Foi com as mãos dos pajés que Oswald escreveu contra todas as catequeses: só a antropofagia nos une… tupi or not tupi”.
“Mais realistas do que o rei. Se os paulistas não gostassem do que a Europa gostava, eles não existiriam. Queriam ter tido Idade Média, Renascença. Acabaram tendo a Idade da Catequese e da Imitação. Da São Paulo dos palacetes do café sobraram só os nomes das ruas. Quase todos demolidos. Dezenas de quartos e apenas um banheiro. Copiados da Europa, feitos para durar. Não duraram. Aqui, o passado não importa, só a novidade. São Paulo copiou sem, de fato, copiar. Nada a ver com a Europa. Nada a ver com os Estados Unidos. Tudo a ver consigo mesma, com a autodevoração. São Paulo devora São Paulo. Do contrário, não se reconhece. Sadomasoquista. Metástase do inferno”.
Olhar parisiense, visão de lacaniana? Absolutamente. Betty Milan é uma grande escritora, e paulista e brasileira. De corpo e alma, podem apostar. Única ressalva: ela me contou que está com uma coluna na revista Veja. Onde tem “total liberdade para escrever”. Certo, pensei, mas até quando?