A Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988 já dispõe de sua fortuna crítica. Temos análises de toda procedência sobre os mais variados aspectos do movimento que refundou o ordenamento jurídico da nação, apoiadas, muitas delas, em relatos dos próprios protagonistas.
A experiência da Constituinte propiciou a eliminação dos entulhos autoritários, consagrando, no plano jurídico, a redemocratização e o retorno do Estado de direito. Fazia, assim, tábula rasa do passado. Mas, portadora de futuro, anunciava os fundamentos da nova era do Brasil democrático, descortinando profundos processos de alteração da ordem institucional.
Nesta encruzilhada entre passado e futuro, discutia-se a inserção da mulher no ordenamento jurídico nacional.
Inserção, pois todas as nossas constituições anteriores estenderam um manto de silêncio sobre a definição da condição feminina. O silêncio era apenas contrariado quando se reforçava o caráter misógino e sexista de legislação que exprimia com perfeição a assimetria das relações de gênero em sociedade patriarcal e conservadora.
Como bem observou uma das líderes do movimento das mulheres na Constituinte, Maria Amélia de Almeida Teles, “apesar de poucas, nós fizemos também o texto dessa lei, nós colocamos na Constituição o que nossas avós e mães nunca tiveram o direito de colocar”.
A Constituinte representou, de forma inédita na história de nosso país e na de muitos outros, a participação direta das mulheres na elaboração do texto constitucional. Até então, apenas a carta de 1934 registrou a participação de membro do sexo feminino, ainda assim, única, Carlota Pereira.
Elegeram-se, para a Constituinte, 26 mulheres parlamentares do universo de 166 candidatas que se apresentaram para o pleito de 1986. Reconheço, eram realmente poucas. Mas constituíam novidade no Congresso Nacional, pois a sua eleição ampliou de 1,9 % para 5,3% a representação feminina no Parlamento.
PublicidadeAs nossas constituintes conseguiram ampliar de forma significativa a sua importância por meio de um coletivo: a bancada feminina. Em depoimento recente, a ex-deputada constituinte Ana Maria Rattes comentou como o grupo de pressão organizava-se. Nas suas palavras, “tivemos que nos unir, enquanto mulheres, em torno de nossa causa, de nossas bandeiras, porque as estruturas tanto do parlamento como dos partidos eram – e ainda são – masculinas. Então, a gente atuou mesmo foi suprapartidariamente, somando forças, tentando superar nossa pequenez numérica”.
Apesar da diversidade de posições político-ideológicas, a bancada feminina alcançou coesão e efetividade na defesa de uma pauta ampla e notavelmente progressista. Das mais de 3 mil emendas de sua autoria, 80% lograram êxito na aprovação. Na avaliação do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP), que hierarquiza a atuação parlamentar em razão da defesa de interesses dos trabalhadores, a bancada feminina alcançou excelentes notas.
A nossa Carta também foi escrita por mulheres, é preciso afirmá-lo. Neste texto, há um toque feminino.
Mas, como conseguiram alcançar tanto sendo tão poucas, ainda em ambiente desfavorável, que se refletia na marginalização dos postos de poder da assembleia e do debate das questões mais definitivas para a ordem institucional?
O lobby do batom – como passou a ser conhecido o grupo formado pelas 25 constituintes da bancada – se apresentou como a forma de atuação política mais decisiva. Cientes dos constrangimentos que tolhiam as suas ações, as mulheres articularam, dentro e fora da Assembleia, como observou a pesquisadora Salete Maria da Silva, “diversas formas de atuar e acumular forças, construindo, coletivamente, os direitos inseridos na Constituição, os quais, em sua grande maioria, correspondem às históricas demandas das mulheres brasileiras”.
A construção desse lobby reunia referências programáticas, explicitadas na Carta da Mulher Brasileira aos Constituintes, entregue ao presidente da Assembleia Constituinte, deputado Ulysses Guimarães, em março de 1987, onde se afirmava a dupla exigência do voto feminino: “Um sistema político igualitário e uma vida civil não-autoritária”. Posteriormente, o posicionamento programático da bancada feminina foi mais detalhado em manifesto, também entregue a Ulysses, em setembro de 1987.
Tecia-se, ali, a enorme habilidade de construir acordos horizontais, de obter consensos parciais e de estabelecer redes de colaboração, os quais ampliavam o leque de exercício das práticas de mobilização política feminina.
A participação popular ungiu e legitimou o evento constituinte. Não foi diferente com a atuação da bancada feminina. A capilarização do movimento acentuou-se na fase inicial da Assembleia, sobretudo na coleta de assinaturas para as emendas populares e na apresentação de sugestões populares nas subcomissões e comissões temáticas.
A atuação feminina na Constituinte transbordou do lobby do batom para o universo econômico e social extremamente diversificado do Brasil. Mulheres de todo os quadrantes, de condições econômicas e sociais as mais diversas, as heroínas populares da nossa epopeia jurídica, fizeram ouvir a sua voz por meio destes institutos de participação popular direta, ampliando e repercutindo de forma mais intensa a ação política da bancada feminina.
O lobby do batom, construiu forma de ação política singular, amparada em campanhas de adesão e participação popular, no debate, acompanhamento e negociação política de enorme número de emendas e na exploração de forma de ação política direta na Assembleia voltada para a construção da identidade feminina.
Até mesmo a incorporação do termo lobby do batom como a identidade principal do grupo de pressão tinha o sentido de inverter a lógica sexista que alimentou a sua criação, baseada na exclusão feminina do debate daquilo que era “sério” e próprio da atividade masculina, os grandes temas de interesses nacional.
A luta da mulher na Constituinte visava garantir os direitos específicos da mulher. Expressava, contudo, a sua visão de país, sobre a questão econômica, a questão social de uma forma global.
Para a constituinte Cristina Tavares, a grande conquista da bancada feminina consistiu na transformação em “bancada de mulheres políticas profissionais”.
Circunscritas ao domínio do extravagante e do curioso, desprovidas de seriedade, as constituintes mostraram seu valor e passaram a ser “tratadas como políticas que têm posições e que têm intervenções na Constituinte semelhantes às dos homens”.
Assim, inúmeras conquistas da Carta de 1988 podem ser atribuídas ao lobby do batom: licença maternidade de 120 dias; licença paternidade de sete dias; salário família; direito a creche e educação pré-escolar; proibição de discriminação em razão do sexo; plena igualdade entre homens e mulheres; igualdade no acesso ao mercado de trabalho e na ascensão profissional; igualdade salarial entre homens e mulheres por trabalho igual; proteção estatal à maternidade e à gestante; igualdade de direitos previdenciários e aposentadoria especial para mulheres; igualdade na sociedade conjugal; liberdade no planejamento familiar; coibição da violência na constância das relações familiares, bem como o abandono dos filhos menores.
A extensão dos direitos trabalhistas e previdenciários garantidos, de forma plena, às empregadas domésticas, só foi definitivamente regulamentada agora recentemente.
A Constituinte normatizou vastas áreas de interesse da condição feminina, descerrando o silêncio que sobre ela pesava. A partir daí, incentivou o debate e a regulamentação legislativa sistemática da questão feminina.
Nestes 25 anos que nos separam da promulgação da Carta de 88, a questão feminina adquiriu visibilidade no Parlamento. Muitas questões não resolvidas na Constituinte, algumas delas bem polêmicas, foram retomadas, como a possibilidade de aposentadoria para donas de casa, apresentada como emenda popular, a regulamentação do trabalho doméstico e a Lei Maria da Penha, que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.
A Lei de Cotas assegurou patamares mínimos de participação política ao sexo feminino. Muitos dos avanços que se registraram na produção legislativa sobre a condição feminina estão diretamente relacionados com a maior representatividade política das mulheres no Parlamento. Em tempos recentes, as mulheres chegaram a responder pela apresentação da metade das proposições legislativas sobre questões femininas.
Na área da saúde, conhecemos regulamentação precisa de várias questões, a prioridade no atendimento de pacientes vítimas de violência sexual; a prevenção do câncer do colo do útero (exigência de exames gratuitos; dia nacional da mamografia); a instituição do planejamento familiar (laqueadura; vasectomia e ações de planejamento familiar, como reprodução assistida); a garantia dos alimentos gravídicos; programas de Prorrogação da Licença à Gestante e à Adotante e de atendimento pré e perinatal.
Qualquer listagem não faria jus ao enorme esforço político e legislativo de garantia de acesso das mulheres à cidadania que teve lugar nos tempos recentes.
Reconhecemos na Constituinte a pedra de toque para a construção de uma nação mais atenta às dissimetrias nas relações de gênero e no desenvolvimento de políticas públicas que favoreçam a igualdade de gênero.
Por conta da presença da mulher na Constituinte, podemos dizer, que a nossa Carta realmente é uma constituição cidadã.