Com uma capa azul-piscina – ou pavão ou ticiano ou Caribe – talvez para combinar com as férias, Marcelo Mirisola entra em 2010 bombando com estas Memórias da Sauna Finlandesa, marcando também um retorno à Editora 34 (não que ele tenha deixado a Record, só acho que está diversificando). E para quem ainda não o conhece, ele e seu estilo mais do que ácido, cítrico, contudo eternamente crítico de deus e todo mundo, é uma grande chance poder apreciá-lo no formato “contista” – mais urgente, conciso, em todo o caso sempre crudelíssimo. Porque MM estreou em 1997 com um livro de contos, Fátima Fez Os Pés Para Mostrar Na Choperia (Estação Liberdade), hoje antológico, um marco nas letras brasileiras das últimas décadas.
Sempre em pleno exercício daquele meta-priaprismo divergente, de saída aponto “A Casa das Pedras” de longe a crítica mais corrosiva deste volume, porque sistemática, porque pontual, porque letal e sem subterfúgios: ele literalmente demole o tal arquiteto da Casa:
“Caíto morreu num acidente náutico no começo dos oitenta. Foi uma comoção no mundo da arquitetura e do design interativo, ainda nos primórdios. Ele era uma espécie de guia, um farol que iluminava os colegas, e comia a mulher deles. Se facilitassem, comia as filhas e as enteadas também. Jovem, nem quarenta anos, havia sido convidado por J.J. Takaoka para implementar o que viria a ser o primeiro condomínio fechado do Brasil, o Alphaville. Se Caíto não tivesse morrido tão cedo, talvez a história dos condomínios fechados tivesse sido outra, certamente mais humana, com a natureza interagindo quase imperceptivelmente junto às grades e sistemas de alarme antipânico….(…) Mas eu dizia que Caíto era quase um profeta e sua vocação humanista estava muitos anos à frente de seu tempo, desde aquela época preocupava-se com a superlotação das cadeias, vejam só, foi ele o primeiro a idealizar cadeiões espalhados em unidades pelo interior do estado. Caito era o nosso Da Vinci na versão Balacobaco. Trinta anos depois, o mundo fashion e a faculdade Anhembi-Morumbi não puderam contar com a presença dele naquela que talvez tenha sido a data mais importante da faculdade desde sua criação. O filho de Caito, Cauã, iria se formar na primeira turma do curso de Moda. O reitor homenageou o amigo arquiteto: “Una família de pioneiros”. Tanto o reitor, como os amigos do arquiteto e os clientes, todos participavam de surubas. (…) Caíto vive em Cauã, um é a cópia do outro. Se fossem construções seriam casas geminadas: o pai projetava cemitérios lúdicos e o jovem Cauã vestiria caveirinhas anoréxicas e milionárias.”
Não fica pedra sobre pedra. Reinaldo de Morais, que assina a orelha, também contribui com algumas sacadas na decifração da fera, na correta leitura de sua obra, quando diz que “nestas Memórias temos algo daquela sintaxe já atenuada num fraseado discursivo mais linear, a exigir menos ginástica cognitiva, traço estilístico que Mirisola vem aperfeiçoando desde sua novela-vingança, Joana a contragosto, de 2005.” Realmente, em razão do formato “conto”, existe uma redução do estranhamento, aumentando a fluência e o humor destas ficções. Se não fosse uma heresia, eu diria que esta é uma daquelas raras ocasiões em que Mirisola “facilita” a vida do leitor.
No mais, lá pela Terceira Parte, em “Os gorilas de Sumatra” volta o alter-ego Barletta, o “grande filha da puta!”, e por derradeiro, a citação:
“Uma vez, no táxi, o dia quase amanhecendo com trinta anos de atraso, Márcia Denser me disse ‘meu prazo de validade venceu’. Claro que devia tê-la beijado, mas sou um bundão, você me conhece, Barletta. Um bundão que escreve para se vingar, por acumulação e espanto; se Deus existe e não está do lado da Ivete Sangalo, eu gostaria de pedir a ele que me livrasse do suicídio.”
Claro, Mirisola, porque “eu jamais te abandonaria na barraca de pastéis”. Valeu, cara.