José Rodrigues Filho*
Há cerca de três semanas, toda a imprensa britânica noticiou as falhas da eleição eletrônica realizada na Escócia pela primeira vez. Cerca de 140.000 (cento e quarenta mil) votos perdidos. Segundo a imprensa e diversos especialistas, a eleição foi um fiasco. Para o governo, houve uma falha técnica muito séria. Considerando o percentual de votos perdidos (cerca de 7%), em relação ao total de votos dos eleitores escoceses, a margem de erros não é tão pequena.
Mas o que aconteceu na Escócia? Os escoceses não utilizaram uma tecnologia similar a que é usada no Brasil. Portanto, ao invés de voto eletrônico (e-voting), como acontece no Brasil, eles utilizaram máquinas de contar votos (e-counting), que parece ser uma tecnologia mais segura e transparente do que a nossa, já utilizada em alguns países. A tecnologia parece ter sido desenhada para contar cédulas preenchidas corretamente, as quais poderiam ter sido mais simples, evitando erros de preenchimento. Quem não as preencheu corretamente, perdeu o voto.
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Há poucas semanas, também, a imprensa francesa noticiou todas as queixas dos franceses com a experiência do voto eletrônico na França. Falhas das máquinas, delonga no processo de votação, filas imensas etc. Alguns partidos, a exemplo do Partido Verde e Socialista, se pronunciaram contrários ao uso do voto eletrônico naquele país.
Só no Brasil as eleições eletrônicas acontecem na maior perfeição do mundo. Em geral, seis horas depois de acontecerem, as autoridades brasileiras se dirigem à toda população confirmando o sucesso espetacular da tecnologia. Muitas pessoas e candidatos reclamam, em vão, do desaparecimento de seus votos, mas nunca chegaram a confirmar o que realmente aconteceu. A segurança e o sucesso da tecnologia parecem ser ditados pela voz das autoridades. Ora, onde existem tecnologia e pessoas existem erros. Infelizmente, no nosso Brasil, a imprensa burguesa dominante sempre vem confirmar tudo o que as autoridades afirmam. Ademais, o tipo de tecnologia de voto eletrônico existente no Brasil é considerado de elevado custo, mundialmente reconhecida como insegura, além de ser um instrumento violento de alienação do voto, com conseqüências desastrosas quanto à redução da cidadania.
Há poucos dias, a Câmara dos Deputados criou a Subcomissão Especial de Segurança do Voto Eletrônico, que parece se limitar apenas a analisar os problemas de segurança do voto eletrônico, com o propósito de apontar uma legislação pertinente para o caso. É preciso compreender que o problema do voto eletrônico no Brasil transcende as questões de segurança da tecnologia. Isso não é problema em relação ao problema maior. As propostas de dotar as máquinas de votar com impressoras para emitir provas do voto não implicam melhoria da segurança. Isso o próprio governo já sabe. O exemplo de Cuyahoga, nos Estados Unidos, prova isso.
Aliás, o Congresso dos Estados Unidos deve aprovar, nos próximos dias, uma legislação, proposta pelo congressista Rush Holt, no sentido de que as urnas eletrônicas só sejam utilizadas se acopladas ao voto impresso. Já se sabe que o propósito não é melhorar a segurança, mas permitir auditorias, quando necessárias. O assunto é polêmico, uma vez que, para muitos, a urna eletrônica deva ser abolida de uma vez por todas. Aliás, o mundo inteiro está ansioso esperando o resultado de dois relatórios importantes sobre o uso de urnas eletrônicas nos Estados Unidos, referentes aos Estados de Ohio e Califórnia.
O voto eletrônico surge num momento de descrédito dos políticos, seus partidos e outras instituições. O propósito principal de seu desenvolvimento visa a um maior comparecimento às urnas e a um maior somatório de votos, como discutido anteriormente neste espaço. Desenvolver uma tecnologia para facilitar o ato de votar não vai resolver a questão de participação no processo democrático. É necessário, antes de tudo, ampliar o engajamento das pessoas na vida democrática. Infelizmente, no Brasil e no mundo, democracia tem se limitado ao ato de votar. Precisamos da democracia entre as eleições e não apenas durante as eleições.
Assim sendo, a tecnologia de voto eletrônico não pode ser separada da cidadania. Qualquer tentativa de querer introduzi-la de outra forma, o efeito será desastroso. Por conta dessa separação é que a introdução do voto eletrônico no Brasil, enquanto tópico de reformas eleitorais passadas, pode ser visto como uma perversidade contra os cidadãos. Não se conhece ainda como essa tecnologia foi introduzida no Brasil. O que se sabe é que empresas multinacionais comemoraram o maior faturamento de sua história, vendendo urnas eletrônicas ao Brasil. Enquanto isso, os cidadãos brasileiros continuam cada vez mais afastados do processo político e com a cidadania em baixa. Apesar de se utilizar uma tecnologia de elevado custo, não foi possível aumentar o comparecimento às urnas. Pelo contrário, nas eleições passadas, a votação para deputados federais caiu em relação à eleição anterior. Não foi possível diminuir a corrupção e a compra de votos que, nas eleições passadas, registraram índices assombrosos.
Essa comissão deverá abrir perspectivas para se discutir uma tecnologia apropriada de voto eletrônico com a sociedade, viável e de custo razoável. Ao contrário de outros países, não se sabe por que esse assunto não é amplamente discutido no Brasil pela sociedade e pela academia. Dentro de poucos meses, o voto eletrônico na América Latina estará sendo discutido num Colóquio Internacional, a ser realizado no México. No Brasil, o debate sobre o voto eletrônico é inexistente, embora o país seja pioneiro nessa experiência. Já que existem várias opções de tecnologias criadas e outras que poderão ser criadas, é mais do que necessário analisar quais são as mais adequadas e de custo razoável.
Contudo, se essa comissão se limitar apenas a renovar a legislação eleitoral para acomodar a tecnologia aí existente, pode dar um exemplo para o mundo de que no Brasil os códigos de software já desmoralizam os códigos da lei. Aí estaremos nos piores do mundo. A recente tendência de se privatizar a contagem de votos, com as corporações exigindo direitos de propriedade para manterem seus hardware e software escondidos ou em segredo, já começa a levar muitos a desconfiarem das e-vitórias, ou seja, vitórias eletrônicas, já manipuladas em alguns países. Num próximo texto essa questão será melhor discutida.
* José Rodrigues Filho foi pesquisador nas Universidades de Harvard e Johns Hopkins. Atualmente é professor da Universidade Federal da Paraíba.