Claudionor Rocha*
Quando se fala em reforma eleitoral, sobressai o voto distrital misto como sistema mais recomendado a proporcionar fortalecimento dos partidos e identificação do eleitor com o mandatário, dentre outros efeitos desejáveis.
Como se sabe, no voto distrital misto mais comum a circunscrição é dividida em tantos distritos quanto a metade do número de deputados, de modo que essa metade é eleita nos distritos uninominais e a outra, pelo sistema de listas elaboradas pelos partidos. Assim, tem o eleitor direito a um primeiro voto, no candidato (voto distrital) e a um segundo voto, no partido (voto de legenda), sendo-lhe facultado utilizar apenas um deles. Se for ímpar o número de vagas, elege-se um candidato a mais pelo segundo voto.
O voto duplo só é possível nas circunscrições eleitorais com direito a quatro vagas, no mínimo, uma vez que, para duas vagas, sendo uma definida pelo sistema proporcional, quanto à outra, pelo majoritário, o distrito unitário confunde-se com a circunscrição eleitoral. Se forem três vagas, sendo destinadas duas pelo sistema proporcional, o resultado é idêntico.
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O quociente eleitoral, razão entre o número de votos válidos e o de cargos a preencher, é estabelecido com base no segundo voto, para determinar a quantas vagas o partido tem direito. No sistema italiano, do número de vagas obtidas pelo partido é descontado o número de mandatos conseguidos nos distritos, diferentemente do alemão que, não procedendo a essa subtração, permite a obtenção de mandatos adicionais, em virtude daqueles conseguidos nos distritos.
Um problema prático que surge quando se propõe a adoção do voto distrital misto é quanto à divisão da circunscrição eleitoral em distritos. Não há consenso quanto à melhor técnica e as propostas são escassas. Parece unânime, porém, que tal discriminação deva ser feita em função da população em vez do eleitorado, por estar evidente que os parlamentares representam a todos, embora o direito político ativo seja facultado apenas a brasileiros maiores de dezesseis anos, alistados.
Comenta-se que as microrregiões homogêneas talvez fossem áreas ideais à conformação dos distritos. Tais unidades, criadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 1968, foram renomeadas em 1976 para microrregiões geográficas, conservando sua característica de preservar os limites municipais, dentro de um mesmo estado, abrangendo aqueles ligados entre si por fatores vários, em que predomina o modo de produção. Nessa mesma ocasião as microrregiões foram agrupadas em mesorregiões geográficas, abrangendo duas ou mais microrregiões vizinhas de um mesmo estado. A própria quantidade total de microrregiões no país (558) e por estado aproxima-se ligeiramente do número de deputados federais, em cada caso.
A simples identificação de cada microrregião com um distrito, no entanto, causaria o inconveniente de tornar caótica a proporcionalidade hoje existente dentro do mesmo estado, vez que teriam o mesmo peso político microrregiões com áreas equivalentes, mas com densidade demográfica extremamente díspares.
Se considerarmos o município como a menor área passível de constituir um distrito, podendo este englobar, ainda, mais de um município como parcela de uma microrregião, a própria microrregião como um todo e até várias microrregiões, uma ou mais mesorregiões, haveria como que uma compensação a essa distorção, desde que todos os distritos tivessem quase o mesmo número de habitantes.
Visando a otimizar a divisão dos distritos levando-se em conta a população, pode-se estabelecer um “quociente distrital” (QD) que seria a razão entre o número de habitantes do estado e o número de vagas distritais, representando a população ideal de cada distrito. Diante da impossibilidade de divisão exata e mesmo aproximada, é preciso estabelecer limites de tolerância para mais e para menos em relação ao quociente distrital, parecendo ser bastante apropriado o parâmetro alemão, de um terço.
Assim, a divisão dos distritos iniciar-se-ia pelos municípios. Aqueles que detivessem população entre dois terços e quatro terços do quociente distrital, isto é, um terço a menos e um terço a mais, constituiriam um distrito de per si. A seguir, submeter-se-iam as microrregiões ao mesmo critério, com sede no município mais populoso e, por fim, as mesorregiões.
Nessa seqüência, o distrito cuja população excedesse o quociente distrital teria direito a tantos representantes quantas vezes a população contivesse referido quociente. Consistiria, então, em um distrito de magnitude superior a 1, igual ao mencionado quociente, criando-se, na hipótese, o distrito de média magnitude. Aí surgiria outro problema, quanto ao município bastante populoso, normalmente a capital, em relação aos demais do estado, o qual, se constituísse apenas um distrito, com direito a mais de uma vaga, influiria no cálculo final do número de distritos.
A solução é fixar o número de deputados a serem eleitos pelo voto distrital, sem, no entanto estabelecer um número certo de distritos, de modo que a disputa de tais vagas de um mesmo distrito seria plurinominal, conforme o número delas. Essas vagas múltiplas, num mesmo município, seriam descontadas do total, a partir da segunda, de modo que o número de deputados eleitos pelo sistema distrital seria a metade, mas o número de distritos poderia ser menor.
Na hipótese de mais de uma vaga na mesma microrregião, ela seria dividida em tantos distritos quantas vagas fossem, abrangendo, cada um, dois ou mais municípios, o mesmo se procedendo quanto à situação semelhante numa mesma mesorregião. As vagas seriam distribuídas preferencialmente por microrregião dentro de uma mesma mesorregião e, não sendo possível, pelo número de microrregiões necessárias para conter os distritos, de forma que as médias eleitorais dos distritos assim formados fossem as mais próximas possíveis, entendendo-se como “média eleitoral” (ME) a razão entre o número de habitantes e o de vagas.
Na formação de distrito com mais de uma unidade, seja município, microrregião ou mesorregião, ou mistas, seriam considerados os seguintes fatores, na medida do possível, além daqueles determinantes descritos:
1) que sejam o mais próximas entre si;
2) que tenham, no conjunto, o menor perímetro;
3) que sejam todas, ou a maioria, contíguas entre si;
4) que estejam interligadas, por vias terrestres ou aquáticas convergentes a uma conurbação principal centralizada; e
5) que o município encravado na área de outro ou que se limite apenas com um município do mesmo estado integre o mesmo distrito, exceto se constituir um, isoladamente.
Restando vagas, seriam destinadas aos distritos com maior sobra (população menos o produto do quociente distrital pelo número de vagas), recalculando-se as médias naqueles com vagas acrescidas. Proceder-se-ia aos ajustes necessários quando, atingido o número de vagas distritais previstas, qualquer dos distritos extrapolasse a tolerância de um terço para mais ou para menos do quociente distrital, efetuando-se a distribuição por agregação a um distrito e desagregação correspondente de outro, de municípios, microrregiões ou mesorregiões em novas combinações entre si. Note-se que a estrita obediência a essa tolerância é garantia de caráter constitucional na Alemanha.
A título de exemplo e como prova de que o sistema pode funcionar como proposto, sugere-se a divisão distrital abaixo, considerando o estado mais populoso (São Paulo) e outro de população média (Goiás).
Estado de São Paulo
População: 34.583.637 (1997).
Número de deputados: 70.
Deputados a serem eleitos pelos distritos: 35.
Quociente distrital (QD): 988.103; dois terços: 658.735; quatro terços: 1.317.470.
Ao se formarem os distritos, verificamos primeiramente quais municípios podem constituir um, isoladamente: São Paulo (9.856.879), com direito a nove vagas e Campinas (919.084), com direito a uma. Depois, as microrregiões 46-Sorocaba (1.015.927), 50-São José dos Campos (1.130.429), 59-Guarulhos (1.107.253), 60-Itapecerica da Serra (742.776), 62-Moji das Cruzes (1.011.269) e 63-Santos (1.193.944). Em seguida, as mesorregiões 04-Bauru (1.231.872), 05-Araraquara (675.616), 06-Piracicaba (1.142.262), 08-Presidente Prudente (764.941) e 11-Itapetininga (698.491). Sobraram catorze vagas, que serão preenchidas mediante os cálculos seguintes.
Aproveitando os municípios remanescentes da microrregião 61-São Paulo, formaríamos o distrito São Bernardo do Campo/Diadema (1.006.441), este último por estar confinado; outro pelos demais municípios: Santo André, Mauá, São Caetano do Sul, Ribeirão Pires, e Rio Grande da Serra (1.253.611). No distrito 32-Campinas, os demais municípios da microrregião (1.105.210). No 57-Osasco, um distrito englobando os mu-nicípios Osasco/Barueri (820.030) e outro integrando os demais (670.107), uma vez que a população da microrregião toda extrapola os quatro terços, bem como o município de Osasco sozinho não atinge os dois terços.
As mesorregiões 09-Marília e 10-Assis, confinantes, são suficientes para formar apenas um distrito (830.787) conjuntamente. Extrapolam os quatro terços as mesorregiões 01-São José do Rio Preto e 02-Ribeirão Preto. A primeira cederia a microrregião 01-Jales para a mesorregião 03-Araçatuba, formando assim dois novos distritos, com 1.204.932 e 770.155 habitantes respectivamente. A mesorregião 02-Ribeirão Preto se-ria dividida em dois distritos, um formado pelas microrregiões 14-Ribeirão Preto/13-Jaboticabal (1.142.980) e outro pelas demais (819.803).
Restaram as microrregiões remanescentes das mesorregiões 07-Campinas (1.004.315) e 13-Vale do Paraíba Paulista (678.386), as quais formam distritos independentes, bem como as das mesorregiões 12-Macro Metropolitana Paulista (microrre-giões 45-Piedade, 47-Jundiaí e 48-Bragança Paulista), 15-Metropolitana de São Paulo (microrregiões 58-Franco da Rocha e 60-Itapecerica da Serra) e toda a mesorregião 14-Litoral Sul Paulista. Ficaram separadas as microrregiões 45-Piedade, de um lado, 47-Jundiaí e 48-Bragança Paulista, de outro, da mesma mesorregião 12-Macro Metropolitana Paulista, já que a microrregião 46-Sorocaba, situada entre elas, formou um distrito isoladamente. Assim, forma-se um novo distrito misto englobando as microrregiões 47-Jundiaí, 48-Bragança Paulista e 58-Franco da Rocha, partes das mesorregiões 12 e 15 acima referidas (1.160.552).
Sobraram a microrregião isolada 45-Piedade e a mesorregião 14-Litoral Sul Paulista. Quanto à microrregião Piedade (157.399), contígua aos distritos Itapecerica da Serra (742.776), Sorocaba (1.015.927) e Itapetininga (698.491) e à mesorregião Litoral Sul Paulista (392.489), se a associarmos à última, atinge uma população de 549.888, insuficiente para formar um distrito. A mesorregião Litoral Sul Paulista, embora pouco habitada, tampouco pode ser acrescida aos já formados distritos vizinhos São Paulo, Santos e São Bernardo do Campo/Diadema, sob pena de extrapolar os quatro terços (1.317.470). Se acrescermos o Litoral Sul Paulista e Piedade ao distrito contíguo menos populoso, Itapetininga, teremos 1.248.379 habitantes, dentro do limite de quatro terços. Esses dois territórios não podem ser acrescidos ao mesmo tempo ao outro distrito contíguo já formado, Sorocaba, pois extrapolaria os quatro terços, com 1.408.416 habitan-tes. No entanto, ao buscarmos o contingente populacional mais próximo entre os distri-tos, especialmente sendo possível o remanejamento, por se tratar de distritos vizinhos, podemos associar a microrregião 45-Piedade a outros distritos que redundem em popu-lação menor (mais próximo do quociente distrital), como Sorocaba (1.173.326), Itapetininga (855.890) ou Itapecerica da Serra (900.175), sendo esta última a opção que mais se aproxima do QD. Quanto à mesorregião 14-Litoral Sul Paulista, poderia ser acresci-da aos distritos Itapetininga (1.090.980) e Itapecerica da Serra (1.135.265), ficando o primeiro mais próximo do QD.
Fica assim definido que a mesorregião 14-Litoral Sul Paulista passe a integrar o distrito Itapetininga (1.090.980), enquanto a microrregião 45-Piedade se junta ao distrito Itapecerica da Serra (900.175), fazendo com que a média desses dois últimos distritos se aproxime do quociente distrital (988.103).
Faltando, ainda, uma vaga a ser preenchida, ela será destinada ao distrito com maior sobra (963.952), que é o do município de São Paulo, que contará, afinal, com dez vagas, num total de 35, distribuídas em 26 distritos. Se essa vaga extra de São Paulo determinasse uma média inferior a dois terços do quociente eleitoral, nova divisão deveria ser feita, de modo a manter a população de cada distrito nos limites estabelecidos.
Estado de Goiás
População: 4.515.868 (1994).
Número de deputados: 17.
Deputados a serem eleitos pelos distritos: 8.
Quociente distrital (QD): 564.483; dois terços: 376.322; quatro terços: 752.644.
Primeiramente, verificamos que o município de Goiânia (1.002.377) tem quociente distrital suficiente para formar dois distritos, cabendo-lhe, portanto, duas vagas. O conjunto dos municípios remanescentes da microrregião 10-Goiânia (491.332), constituem outro distrito. As mesorregiões 01-Noroeste Goiano e 02-Norte Goiano formam apenas um distrito (499.966). Outro distrito é formado pela mesorregião 03-Centro Goi-ano menos a microrregião 10-Goiânia (708.018). A mesorregião 04-Leste Goiano forma um distrito isolado (733.060), enquanto a 05-Sul Goiano forma dois, um englobando as microrregiões vizinhas 13-Sudoeste de Goiás e 18-Quirinópolis (399.855) e outro, integrado pelas microrregiões 14-Vale do Rio dos Bois, 15-Meia Ponte, 16-Pires do Rio e 17-Catalão (581.260). Assim, o total de oito vagas está preenchido, em sete distritos. Caso houvesse sobra maior que o quociente distrital, tal divisão teria de ser revista e feita de outra forma.
Com tal estudo, procurou-se demonstrar que a divisão dos distritos não é tão complexa, conforme o sistema proposto. Os exemplos utilizados, o estado mais populoso e outro, de população média, bem como o universo populacional de épocas distintas, denotam a aplicabilidade do método a qualquer estado brasileiro, a qualquer tempo.
*Claudionor Rocha é consultor legislativo, diretor do Departamento de Polícia Legislati-va da Câmara dos Deputados
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